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O manifesto de Gil

Por Alberto Bombig

“O Brasil não vive no vácuo.” A frase, aparentemente simples por sua obviedade, ganha peso (ou leveza) de sabedoria oriental quando você a escuta diretamente da boca de Gilberto Gil. Em 1977, o cantor, compositor e multi-instrumentista baiano foi até o coração da África, em Lagos, na Nigéria, participar de um festival cultural. Ao retornar, lançou, naquele mesmo ano, um disco seminal: Refa vela, que atualizou e conectou a música e o movimento negro do País à vanguarda das artes e da luta por igualdade racial.

Quarenta e dois anos depois, a HBO estreia nesta terça, 19, às 22h, o documentário Refavela 40, sobre o álbum e suas várias dimensões na carreira de seu autor e na vida cultural brasileira “Tem um sentido de retrospectiva muito amplo, não apenas sobre o disco, mas sobre todo o contexto”, diz Gil.

Naquela segunda metade dos anos 1970, o Brasil atravessava a distensão da ditadura militar (1964-1985), a democracia ainda era uma promessa e as grandes cidades do País cresciam desordenadamente, empurrando os migrantes, os pobres e os negros para as periferias, para o topo e as encostas dos morros.

Em Lagos, no Festival Mundial da Arte e da Cultura Negras, Gil se deparou com questões até hoje prementes na vida da população negra. A luta por uma identidade sem a perda total da identidade A mistura sem massacrar a essência.

De volta ao Brasil, fez um disco com elementos do afrobeat de Fela Kuti e da black music que naquele altura florescia no Rio, sem, claro, deixar fora o samba, o xaxado e o forró. Um manifesto da cultura negra.

Questionado pelo jornal O Estado de S. Paulo, Gil fez uma análise sobre o atual momento da luta dos negros brasileiros neste 2019 e os 130 anos da proclamação da República: “É evidente que o Brasil não vive no vácuo. A sociedade brasileira se mexeu como um todo. A abolição da escravidão, ainda que parcial, sem o adicional de uma segunda abolição, proporcionou uma emergência das questões negras. Houve progressos, ainda que faltem tantas coisas para a República quanto para os negros”.

Refavela é irmão mais novo de Refazenda (1975), outro álbum antológico de Gil. O documentário da HBO, dirigido por Mini Kerti, antes de tudo celebra esse momento luminoso da carreira de Gil e o toma como ponto de partida, com avanços e retrocessos temporais, para anotar sua influência sobre as novas gerações e no conjunto da obra do cantor e compositor baiano. “Ele é muito claro em relação a tudo o que significava aquele período para mim e para o movimento negro. Uma via de expressão, a consolidação de um gênero que mais tarde viria a ser o axé, por exemplo”, diz Gil, referindo-se a Axé Music baiana.

Em linhas gerais, o documentário está apoiado em três eixos: 1) imagens histórias; 2) cenas da reunião, no apartamento de Gil, 40 anos depois, com depoimentos de parte da banda que o acompanhou na Nigéria – estão lá Rubão Sabino, baixista, Robertinho Silva, baterista, e o percursionista Djalma Corrêa; 3) reinterpretação das canções no show realizado na Concha Acústica de Salvador, em 2017, que integrou turnê comemorativa dos 40 anos do álbum e teve nome da nova geração da MPB, como Céu, Moreno Veloso e Maíra Freitas.

O fio narrativo é conduzido pelo próprio Gil e, principalmente, pelo filho, o também músico Bem Gil, muito à vontade no papel de entrevistador, auxiliado pelo antropólogo Hermano Viana. “Tem um caráter de transmissão de bastão para a nova geração”, diz Gil. Segundo ele, o filho foi “perspicaz” ao perceber o “caráter seminal do disco”. Gil se emocionou ao assistir a o documentário, especialmente nas passagens sobre a prisão dele em Florianópolis por porte de maconha, em 1976, nas cenas antigas de palco e no depoimento de Mãe Menininha do Gantois a Jorge Amado. “Fiquei muito tocado.”

Faixa a faixa

REFAVELA

A inspiração veio dos alojamentos onde Gil e sua banda se hospedaram durante a passagem pela Nigéria. No show ‘Refavela 40’ (e no documentário), o próprio Gil interpretava a canção.

ILÊ AYÊ

Aberta com o inconfundível violão de Gil, a música de Paulinho Camafeu, com quem ele conversa no documentário, exalta o mais antigo bloco de Salvador.

AQUI E AGORA

Composta durante a viagem à Nigéria, tornou-se uma das canções mais célebres de Gil. Moreno Veloso deu voz a ela no show.

NORTE DA SAUDADE

Gil definiu a canção composta com Perinho Santana e Moacir Albuquerque como ‘xote-reggae’.

BABÁ ALAPALÁ

Feita para o filme ‘Tenda dos Milagres’, de Nelson Pereira dos Santos.

SANDRA

Homenagem às mulheres que apoiaram Gil em sua passagem por um sanatório a mando da Justiça, após ser preso por porte de maconha em Florianópolis.

SAMBA DO AVIÃO

Releitura em ritmo de funk do clássico de Tom Jobim.

ERA NOVA

Música feita para Roberto Carlos, que não a gravou.

BALAFON

Canção inspirada no instrumento tradicional da África mostrado no documentário.

PATUSCADA DE GANDHI

Tema do grupo Filhos de Gandhi, em que Gil desfila.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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