Na infância da minha terra, como em todas as brincadeiras, folguedos e meninices, havia uma certa esperança, pureza e poesia no ar.
A cidade era generosa em tipos estranhos: lunáticos, aluados, forasteiros, extravagantes e folclóricos em geral.
Aproveito para uma licença poética, ao “Poeta Maior” Carlos Drummond de Andrade, “… O doido passeia pela cidade sua loucura mansa. Torna-se o doido municipal, respeitável como o Juiz, o Coletor, os Negociantes e o Vigário. O doido é sagrado. Mas se endoida de jogar pedra, vai preso no cubículo mais tétrico e lodoso da cadeia…”. Doido – in Boitempo – CDA.
Entre os nossos habitantes peculiares havia o Passarinho, possuidor dessa alcunha por negociar canários, curiós, pintassilgos, coleirinhas, azulões, sabiás e bicudos que naquele tempo ainda podiam povoar os caibros, varandas e sacadas.
O Passarinho tinha um mote no seu ramo comercial, ou seja, apenas negociava seu produto aos ilustres visitantes e turistas que em veraneio buscavam nosso clima, sítios amenos, praças, lugares mágicos, bailes, carnavais, cachoeiras, luares e águas termais e minerais.
Nosso Carnaval de rua era destaque em todo o Estado como um dos melhores de Minas, destacados queijos, doces, bailes, retretas, praças e nossa destacada hospitalidade.
Em um Natal, um ilustre senhor, magistrado, Desembargador em Belo Horizonte, cansado das buzinas, britadeiras, sirenes e televisores, sonhou com o canto magistral do Canário do Reino.
Foi indicado ao mais competente empresário do ramo das penas e cantos que promete-lhe o melhor e inigualável Belga daquelas serras, semelhantes apenas aos criados pelo meu tio Maestro Lalado e o grande amigo Omarzinho Pimenta, que é claro, os tinham apenas para alegrar e ilustrar as vidas.
Passarinho do alto de sua sapiência e experiência nas atividades passarinhescas, foi logo dizendo:
O Doutor pode ficar tranquilo é um tirinho de espingarda.
Na hora e no lugar marcado apareceu o nosso mascate com um Canário a fazer inveja ao Uirapuru, amarelo ouro, como a gema do ovo e o crepúsculo, de lavar a mágoa, encher a alma e marejar os olhos.
Comentou ao Desembargador o nosso “doutor honoris causa”:
Ele ainda está meio macambúzio, mas dentro de dois, três dias, cantará que é só o senhor “vendo”.
Data vênia lá foi o Doutor da capital orgulhoso levando o tesouro em uma gaiola ampla e dourada adquirida para a moradia daquele que iria alegrar e enfeitar os dias, privilégio daqueles que sabem o que é ser acordado em uma ensolarada manhã de domingo pelos trinados e gorjeios de um Belga.
Nas alterosas o canário quieto, silencioso como as noites em claro, um piano fechado ou minha filha Marina, com a mamadeira olhando para o teto do quarto.
Um dia, dois, três e o bichinho calado, apenas devorando tudo o que lhe ofereciam. Uma folha de almeirão fresquinha, metade de um jiló, alpiste, linhaça, ração, sementes especiais e demais ingredientes da gastronomia dos Canários.
Tudo em vão, ele apenas piava, pulava e devorava.
Duas semanas depois, despencou uma chuva torrencial, de fazer jus ao grito do famoso personagem de Jorge Amado:
Águaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!.
Toda a família no Mineirão em uma final Azul versus Alvinegra, o Canário pendurado ao sabor do vento.
Voltando, correram todos ao Belga, para a surpresa e perplexidade geral estava rescaldo, mais cinzento que o céu anunciando tempestade.
E o nosso mercador de Passarinho foi eternizado por Pardalzinho, pintando os pardais da cor e tonalidade, conforme era o desejo e o pedido do freguês.
Só não podia a mercadoria ser exposta às intempéries.