Na minha convivência com Sócrates, houve noites em que eu não estava a fim de sair, até comentava com minha primeira-dama que se o Magrão ligasse, não sairia. Ela ria, pois sabia que o amigo era insistente e manhoso e acabava me convencendo. Isso aconteceu inúmeras vezes. Lembro que certa vez isso aconteceu numa noite muito fria – e eu sou inimigo desse tempo, até porque quando era policial Rodoviário sofri à beça nas estradas, era uma friagem que gelava até os ossos.
Por outro lado, todas as vezes em que saíamos, me enriquecia com as histórias por ele contadas e que poucos – ou ninguém – ouviram, Eu nem me dava conta de que era um privilegiado, conviver com aquele ser humano de primeira. Quantas pessoas no mundo gostariam de estar no meu lugar, sentar numa mesa com ele? Sempre digo que fui escolhido.
Bem, naquela noite fria que se avizinhava, passava das seis da tarde, ele ligou bem humorado, negociou minha recusa e encerrou: “Buenão, preste atenção, amigo o coração escolhe!!!. Entendeu?” Me calei por uns instantes e falei: “Pô, Magrão, essa bateu forte. Você venceu”. Ele riu e fechamos o assunto.
Sócrates não estava casado na época, disse que o dia havia sido cansativo, ele escrevia para duas revistas estrangeiras e precisava relaxar um pouco. Passei a mão no meu pinho e em pouco tempo estava aboletado na nossa mesa preferida do Empório Brasília.
De cara o Magrão falou: “Cê tá com medo do frio, Buenão?” E eu emendei: “É, Magrão, não sou chegado”. E ele mandou essa: “Você sabia que todos os sensores de temperaturas do nosso corpo partem do nosso rosto? Cobrimos o corpo, mas o rosto parece não sentir frio”. Meio sem entender, fiquei na minha e ele disse que também não gostava de baixas temperaturas. E ainda brincou: “Queria ver você em Florença, lá sim você ia ver o que é frio, parceiro.
E continuou: “Pra você ter uma ideia, o gramado ficava coberto de gelo, eu colocava plásticos e jornais nos pés, perdi as dez unhas…” Senti até pena do Magrão e disse a ele: “Tô fora, parceiro, nem me vejo em lugar assim, não vou nem com tudo pago.” Ele ainda disse: “Buenão, muitas vezes, no vestiário depois do jogo, perguntava pra mim mesmo o que é que eu estava fazendo ali? Dinheiro? Dinheiro não é tudo, eu quero é ser feliz”.
Sócrates tinha problemas com alguns jogadores da Fiorentina, principalmente com Passarella, zagueiro argentino que o boicotava. Sem suportar mais, ligou pro Zico pedindo pra que ele o ajudasse a ir pro Flamengo e deu certo. Estava indo bem no Mengo, mas uma lesão o obrigou a ficar meses fora dos gramados.
Decidiu realizar um antigo sonho: cuidar dos mais necessitados. Vestiu-se de branco e foi ser o Doutor Sócrates, subiu o morro e foi atender moradores. A notícia ganhou corpo e ele passou o dia todo consultando idosos, crianças, gestantes… Esparramou carinho e atenção a todos e simplesmente adorou.
Quando da sua chegada, notou que no pé do morro havia um bar (rsrsrssr). Final da tarde, despediu-e, prometendo voltar no dia seguinte. “Buenão”, disse ele, “desci o morro na maior seca, louco pra dar um banho na garganta, aquele bar era tudo que eu queria, não tinha ninguém a não ser um jovem com a camisa do Mengão que ligou pra alguém e me colocou pra falar com o cara. O outro disse: ‘Doutor, parabéns pelo trabalho no morro, foi maneiro, sei de tudo, tamo junto’. E desligou”.
Sócrates percebeu que o jovem vendia drogas ali, o bar logo encheu de gente com sua presença, só que tanta gente atrapalhava o traficante. Ele ligou pro chefe, que disse: “Fala pro Doutor ir embora”. Recado dado, Sócrates ignorou, chegaram repórteres e mais gente foi chegando, bar lotado, o cara falou pro Magrão: “Doutor, tá na hora do senhor ir embora.”
Sócrates foi ficando até que o rapaz, temeroso, deu um ultimato: “Doutor, vá embora agora, sacou?” Magrão caiu na real e vazou. Eu perguntei a ele se havia subido o morro no dia seguinte. E ele: “Claro, Buenão, mas na volta, desviei do bar…”. E caiu na risada!
Sexta conto mais.