Por Adalberto Luque
O casal Carmino e Isabel Ceciliano jamais recebeu um centavo sequer do dinheiro que foi confiscado de sua caderneta de poupança. Ceciliano, 96 anos, trabalhou durante décadas e se aposentou como soldador de uma montadora de São Caetano do Sul, no ABC paulista.

Prudente, sempre poupou dinheiro e escolheu uma aplicação que, até 1990, era tida como sólida: a caderneta de poupança. Já havia tido problemas com as perdas do Plano Bresser, anos antes, ainda sob o governo de José Sarney.
Mas não imaginava que iria passar o pesadelo de ver todo o dinheiro guardado por uma vida desaparecer de sua conta bancária. Ele e sua esposa Isabel, de 92 anos, estão entre as milhões de vítimas do confisco da poupança.
Hoje os Ceciliano moram com a filha e o genro em Ribeirão Preto, no bairro da Ribeirânia. Vivem com a aposentadoria de dois salários mínimos, insuficiente sequer para pagar o plano de saúde de ambos, que necessitam, entre outros cuidados, de fisioterapia.
Já ganharam a ação em todas as instâncias e, em 2019, foram informados que começariam a receber. Contudo, o banco tentou um acordo. Segundo a família, imoral: menos de 1% do valor do dinheiro devido após confisco no Plano Collor.
O pior é saber que teriam condições de viver com mais tranquilidade, pagando o plano de saúde sem atropelos. Mas ainda seguem contando os centavos para fechar o mês. “Até o final do ano, não teremos mais como pagar o plano de saúde”, lamenta Ceciliano.
Onde está o dinheiro?
A animação da música de Gal Costa, que se tornou uma espécie de “hit do confisco da poupança” contrasta com o humor das vítimas do Plano Collor. O país vinha de tempos de inflação anual de quatro dígitos. O recorde foi registrado em 1989, com 1.764,86% de inflação.
O País entrou em 1990 com a esperança de mudanças. Fernando Collor de Mello, eleito no ano anterior, tomou posse em 15 de março. No dia seguinte, 16 de março de 1990, o maior pesadelo da história econômica do Brasil era anunciado em cadeia nacional de rádio e TV por Collor: passava a vigorar uma nova moeda, o Cruzeiro, em substituição ao Cruzado Novo. Além disso, o governo determinou o confisco de todos os valores aplicados, inclusive nas cadernetas de poupança.
O plano, capitaneado pela então ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello e assinado pelo ministro da Justiça, Bernardo Cabral, era o quarto nos últimos cinco anos, todos para combater a hiperinflação no País – e todos fracassaram.
Para preparar o terreno, o ministro da Fazenda do governo Sarney, Maílson da Nóbrega, decretou feriado bancário de três dias, entre 14 e 16 de março de 1990. Então veio o anúncio. Dentro do pacote de 21 medidas provisórias e dezenas de portarias – todas aprovadas pelo Congresso e até pelo Judiciário, como lembrou o então deputado federal Roberto Freire – estava o inédito confisco de contas bancárias e aplicações nas cadernetas de poupança por 18 meses.
Isso significava que o dinheiro das contas correntes e das poupanças, acumulados durante muitos anos, havia “evaporado” por pelo menos um ano e meio. Outros, como Ceciliano, no começo da reportagem, nunca mais viram um centavo do dinheiro tomado.
Sonho do telefone

A hoje gráfica aposentada, Dagmar Borges trabalhava e fazia horas extras no final dos anos 1980 para conseguir sua tão sonhada linha telefônica. Havia se mudado para o extremo leste da cidade e queria o telefone para poder falar com as filhas adolescentes na hora que fosse necessário.
Conseguiu a linha por sorteio. O dinheiro da entrada estava na poupança. Da noite para o dia, veio o confisco. Dagmar quase perdeu a linha telefônica.
“Tive que pedir dinheiro emprestado. Minha filha mais velha me ajudou. Mas ainda faltava Cr$ 100 para completar o valor. Meu cunhado faleceu na véspera de pagar a entrada. Acabei dando a entender para meu patrão que precisava do dinheiro para ajudar no enterro. Foi um sufoco. E depois não tinha nada na poupança para me socorrer em caso de urgência”, lembra. Ela só recebeu seu dinheiro anos depois, quando entrou na Justiça.
Assim como Dagmar, muitos brasileiros se viram em situação de desespero. Empresários não tiveram como honrar seus compromissos e acabaram demitindo funcionários e indo à falência. Há registros de empresários que morreram em consequência de ataque cardíaco. Outros que teriam cometido suicídio. E houve até quem, revoltado com a situação, atacasse agência bancária.
“O vizinho de minha irmã, que mora em Sumaré [SP], tinha acabado de vender uma casa e aplicou o dinheiro na poupança. Ele alugou a casa que vendeu e ia viver de rendimento, no começo, esperando ver se compensava comprar outra casa. Perdeu tudo e teve que continuar pagando aluguel por muitos anos”, lembra Dagmar.
Filas e desespero
No primeiro dia após o feriado bancário de três dias – e consequentemente após o anúncio do confisco -, os bancos foram tomados por grandes multidões. Formaram-se enormes filas para tentar ver o que havia acontecido com as contas correntes e poupanças dos brasileiros.
Eram tempos onde não se consultava saldo por internet – até porque não havia disponível para a população. Muito menos se sacava por canais eletrônicos. Os depósitos e saques eram anotados pelos caixas ou por funcionários do setor de conta corrente das agências à medida em que aconteciam, no decorrer do expediente. Tinha uma lista impressa antes da abertura das agências.
No final do dia, com as anotações, tudo era devidamente calculado para o saldo do dia seguinte, pelo setor de tesouraria de cada agência. E os brasileiros faltaram no trabalho e foram para a fila.
No dia 17 de março, a confirmação: o pesadelo era real. Para tentar minimizar o impacto, a equipe do governo Collor determinou que era possível sacar Cr$ 50 mil de cada conta. Isso equivale a R$ 23.241,19, corrigidos pelo IGP-M (FGV).
A previsão era de que os valores confiscados seriam devolvidos após 180 dias, em 12 parcelas mensais. Na tentativa de reduzir o impacto da medida, o Plano Collor, que na realidade se chamava Plano Brasil Novo, caíram as restrições às importações, abrindo o mercado brasileiro para os produtos estrangeiros.
Além disso, os preços de bens e serviços foram congelados. Os salários também foram congelados, ignorando a inflação daquele fatídico março de 1990. Houve ainda uma grande reforma administrativa, com extinção de órgãos públicos federais, anúncio de privatização de empresas estatais e adoção de aposentadoria precoce para funcionários públicos, além de reduzir os ministérios de 23 para apenas 12.
Desculpas
Em 2020, o então senador de Alagoas, Fernando Collor de Mello, publicou em uma de suas redes sociais um pedido de desculpas pela medida extrema durante sua passagem pela presidência da República.
“Acreditei que aquelas medidas radicais eram o caminho certo. Infelizmente errei. Gostaria de pedir perdão a todas aquelas pessoas que foram prejudicadas pelo bloqueio dos ativos.”
Segundo Collor, os mais pobres foram os maiores prejudicados, por perder seu poder de compra em questão de dias. “Pessoas estavam morrendo de fome. O Brasil estava no limite! Durante a preparação das medidas iniciais do meu governo, tomei conhecimento de um plano economicamente viável, mas politicamente sensível, com grandes chances de êxito no combate à inflação. Era uma decisão dificílima. Mas resolvi assumir o risco”, observou
O ex-presidente disse ter ideia de que estava arriscando perder sua popularidade e até a presidência – o que de fato ocorreu dois anos depois. “Mas eliminar a hiperinflação era o objetivo central do meu governo”, concluiu.
Paul In Rio

Morando em Ribeirão Preto desde 1988, quando se casou, Martha Jane Araújo e seu marido haviam acabado de comprar uma casa. Tinham um bom dinheiro na caderneta de poupança.
“Meu marido tinha o trabalho dele e fazia bicos. Eu fazia horas extras. Juntamos dinheiro para poder reformar a casa, que era entregue sem muros e sem forro. Queríamos colocar laje, pisos, aumentar a sala e fazer garagem, além de murar”, lembra.
O dinheiro para a obra foi confiscado. Mas Martha lembrou-se do ditado popular: “se a vida te dá um limão, faça uma limonada”. E foi o que ela e o marido resolveram fazer. Com os Cr$ 50 mil que podiam sacar, compraram um pacote de viagem.
Foram para o Rio de Janeiro se juntar a outras 184 mil pessoas que lotaram o Estádio do Maracanã para assistir ao primeiro “Paul In Rio” do ex-Beatle Paul McCartney no Brasil, em 21 de abril de 1990. “Continuamos trabalhando muito e conseguimos reformar a casa. Terminamos sem colocar os pisos, porque tínhamos que nos mudar, pois 20 dias depois, nasceu nossa primeira filha. O dinheiro do confisco só vimos anos depois”, encerra Martha.