Rosemary Conceição dos Santos*
Jorge Rivera Cruchaga (1927-2017) foi um autor chileno que se tornou aluno de doutorado na Alemanha, sob a orientação do renomado filósofo Hans-Georg Gadamer. De extensa carreira docente, recebeu o “Prémio Franco Volpi”, em 2011, pelo reconhecimento de suas pesquisas dedicadas ao pensamento de Martin Heidegger. Suas obras incluem numerosos ensaios e artigos em revistas especializadas em Filosofia da América Latina e Europa, com destaque para seus livros “De espantos e nostalgia”, “ Heidegger e Zubiri, “Em torno do ser”, “Heráclito, o Esplendente”, “Itinerário cordis”, “História da Filosofia Grega” e “Comentário sobre Ser e Tempo”. Sua tradução de “Ser e Tempo”, de Heidegger, é reconhecida no mundo de língua espanhola pela sua excelência e foi incentivada na sua execução pelo próprio autor. Nas palavras de Hardy Neumann, diretor do Instituto de Filosofia da PUC –Valparaíso, a biografia do autor: “Don Jorge Eduardo Rivera Cruchaga, professor, professor, amigo e guia, nos deixou. Muitos de nós que o conhecemos não podemos simplesmente dizer que ele passou pelas nossas vidas. Agora que a morte o surpreendeu, nós o instalamos novamente, lembrando-o, e de forma permanente, em nossos corações. Teria gostado de dizer, pela admiração que sentia por ‘Ser e Tempo’, e com uma boa dose de humor que lhe era própria, que partiu no mesmo ano que assinala os 90 anos da publicação daquela obra.”
“O mundo da filosofia o conhece principalmente por ter sido o autor da segunda tradução para o espanhol de ‘Ser e Tempo’, que se impôs inquestionavelmente no mundo dos estudos heideggerianos. Mas talvez não seja tão conhecido que… Dom Jorge sempre compreendeu a filosofia e o seu ensino… como busca da verdade acompanhada de clareza. Ele incutiu isso não apenas em filósofos, mas também em músicos, arquitetos, advogados, psiquiatras e engenheiros (…) A genialidade da língua tinha que ser respeitada, porque as línguas, assim como as pessoas, têm caráter e, como tais, são inconstantes e é preciso saber lidar com elas…atitude operacional…expressão do esforço inabalável de procurar dizer as coisas difíceis da filosofia da forma mais transparente possível”
“Outra forma de seu ensino era a vitalidade. Para nós que frequentamos os seus cursos durante anos, a entrada na sala de aula representava sempre uma ansiedade em relação ao que ia acontecer lá dentro: fervilhava de ideias que questionavam o núcleo duro das filosofias estudadas. Além de apresentar o assunto com rigor, nunca poderíamos ter certeza de quais comparações ocorreriam ali: poderia ser Heidegger com Tomás de Aquino; Hegel com Aristóteles e Kant; sem qualquer artificialidade…Hoje, que ele partiu, temos tudo isso e muito mais dele em nós. Ele está presente no que somos há muito tempo e isso, certamente, por diferentes meios, por diferentes caminhos e circunstâncias: pela forma como se formou, pela forma como nos fez meditar ao ouvir suas palestras, pela paixão com que o que foi dito adquiriu a formalidade da realidade”.
“Ele sempre nos surpreendeu com suas perguntas. Às vezes você pensava que tinha a resposta para uma pergunta, mas uma sugestão dele bastava para convencê-lo de que a tranquilidade supostamente alcançada era um mísero ganho filosófico. E Dom Jorge levou muito a sério o que perguntar ( percunctari) nada mais é do que estar em suspense, pendurado por um fio. (…) As coisas mais importantes da vida – disse – são indemonstráveis”.
“Na natureza habitual da nossa existência, vivemos com uma disposição natural, sublime e excelente que, “tão bom” (como diria D. Jorge) aceita tudo como vem, porque não pode fazer outra coisa. Trata-se daquela postura, que não é, porém, uma impostura, à qual o homem está inelutavelmente ligado por se dedicar às coisas, antes de qualquer teoria sobre elas. Esta atitude, ao contrário das atitudes habituais, não necessita precisamente de ser adoptada, porque ocorre juntamente com a nossa existência; Basta viver para acreditar nisso. Isso, portanto, é seguro. Como você tem certeza? Como estamos seguros nisso? Simples: porque não perguntamos sobre ela”
“Muito mais deveria ser dito sobre Dom Jorge. Seu papel na promoção dos estudos de Heidegger no Chile, graças ao seu trabalho docente, e, na América Latina, pela sua tradução de ‘Ser e Tempo’, foi decisivo. Mas, além disso, ele teve um impacto profundo na vida de seu público estudantil. Sua tradução de ‘Ser e Tempo’ é o resultado do cadinho de pensar e traduzir que resultou nos seminários que ministrou. Procurou refinar o texto para que o leitor deslizasse sem atrito pelo chão das letras. É justo destacar que a maior e melhor parte de sua obra intelectual foi concebida e forjada em Valparaíso e Viña del Mar, em torno dos mais diversos temas da filosofia: sobre Heráclito, e não “o obscuro”, como ele o chamava.(…) Muitas gerações de estudantes foram treinadas ouvindo suas lições. Os cursos tornaram-se um verdadeiro laboratório de aprendizagem da filosofia, do espanhol e da linguagem da filosofia, pois, para ele, como para Heidegger ou Zubiri, a linguagem não era um mero instrumento. Foi, para dizê-lo com Hegel, aquela dimensão onde o pensamento está no seu elemento porque é o próprio elemento do pensamento.”
‘Dom Jorge se foi, mas quando ficamos, ele fica, na medida em que fizemos nosso o que um dia ele nos ensinou. Ele nos deixa um professor, que são poucos. Sintamo-nos gratos por termos podido participar na travessia com aquela alma, que continuará a encorajar-nos intimamente, pois também forjou a nossa”.
Professora Universitária*