Escrito em 1842, o conto O Capote, de Nikolai Gógol (1809-1852), destaca-se, por seu cunho social, no desenvolvimento da literatura russa do século 19, tornando-se um dos pilares do realismo naquele país. Nele, um pobre funcionário decide trocar seu capote velho e usado, já quase transparente, por um novo. Para tanto, procura pelo alfaiate Petrovitch, mas sai assustado com o custo que a encomenda teria. Passado algum tempo, e providenciado o dinheiro, exibe o capote novo no seu local de trabalho, ainda que “envergonhadamente”, tão tímido era. Convidado a participar de uma comemoração, na saída da mesma é assaltado e tem roubado o mesmo. Na tentativa de reavê-lo, busca as autoridades competentes, mas só encontra desatenção. Humilhado, adoece e vem a falecer. “E Petersburgo ficou sem Akáki Akákievitch, como se ali ele nunca houvesse estado. Desapareceu e ocultou-se um ser que ninguém defendera, que ninguém estimara, por quem ninguém se interessara”.
No entanto, apesar de aparentemente banal, a estória de Akáki assume, inesperadamente, um desfecho fantástico. Rumores correram Petersburgo falando do surgimento do fantasma de um funcionário à procura de seu capote. Sob o pretexto do capote roubado, tomava o capote das pessoas. Um funcionário que trabalhara com Akáki viu o fantasma e reconheceu-o. Mas isso causou-lhe tanto horror que optou por fugir do mesmo. A polícia, informada do ocorrido, tentou prender o fantasma. No entanto, como fazê-lo?
Eis que a “pessoa importante” que, no início, se recusara a ajudá-lo, encheu-se de remorsos e mudou de ideia. Porém, ao fazê-lo, soube que Akáki já havia morrido. Naquela noite, querendo desfazer-se do pensamento incômodo que se lhe tornara Akáki, ao invés de voltar para casa, foi em busca de consolo junto a uma amiga sentimental. No entanto, nas proximidades da casa desta, a “pessoa importante” foi abordada pelo fantasma de Akáki que lhe rouba o capote e pára de molestar inocentes vítimas.
Neste conto, o deslocamento de Akáki, na tentativa de reaver seu capote roubado, serve para sublinhar a identidade social (Akáki é vítima urbana da indiferença social), a identidade religiosa (sua alma é invencível, embora seu corpo seja frágil e efêmero), a identidade ética (Akaki personifica um desejo de fraternidade, que lhe é negada) e a identidade política (Akaki pertence a um grupo que está indefeso justamente pela razão que devia fortalecê-lo: sua liberdade individual) do indivíduo na Rússia de então. Por sua vez, tais identidades extrapolam o berço do autor e ganham a dimensão do cânone: a insignificância da vida, em sociedade, bem como, as expectativas que vão sendo frustradas, à medida que não se realizam, dão lugar à perplexidade ao revelar que há, em todos nós, um “Akáki” a retomar este círculo vicioso toda vez que se estabelecem casos semelhantes em sociedade.