Por Ubiratan Brasil
Pedro narra sua história enquanto relembra a trajetória dos pais, Martha e Henrique. E os dissabores são comuns a boa parte da população brasileira. “Um dia, já tinha sido algemado como um bandido. Isso aos catorze anos, quando você estava num ponto esperando o ônibus, em Copacabana, para ir encontrar seu padrasto. E ser confundido com bandido vai fazer parte da sua trajetória. E você vai custar a compreender por que essas coisas acontecem”, relata o filho, relembrando um fato ocorrido com o pai.
Pedro, Martha e Henrique são negros e estão no foco de O Avesso da Pele, terceiro romance de Jeferson Tenório, carioca radicado em Porto Alegre. Não se trata de um libelo, ainda que a força de sua mensagem seja poderosa. “Para mim, o livro frustra o sistema racista, pois não discute a pele e sua cor, mas conduz o leitor a uma narrativa que passa pela camada epidérmica até chegar ao avesso, a questões mais subjetivas”, diz Tenório, em conversa telefônica com o Estadão.
De fato, trata-se daquela bem sucedida estratégia literária, em que o escritor maneja a escrita de tal forma que transforma o leitor em seu cúmplice. E melhor: sem necessitar de truques linguísticos. A trajetória daquela família é detalhada sem sentimentalismo, com uma precisão quase cirúrgica.
Tenório conta que primeiro precisou estar preparado psicologicamente pois, como cidadão negro, passou por algumas situações descritas no livro. “Passei por um tempo fazendo terapia a fim de ter as situações bem elaboradas para então colocar no papel. Com o tempo, aprendi que a frieza impede de se fazer burrada”, diz, em indisfarçável tom amargo.
O processo foi reforçado por uma extensa leitura, especialmente da obra de James Baldwin, notadamente Terra Estranha, poderoso romance de 1962 que, entre outros assuntos, trata de relações inter-raciais. Henrique, pai do narrador de O Avesso da Pele, namorou uma garota branca e, se ela encarava a relação de forma segura, sua família ostentava uma falsa liberalidade, desmascarada por comentários preconceituosos, disfarçados de brincadeiras. Como saldo, Henrique coleciona temas caros como raça e identidade.
“Tudo o que acontece não é mera circunstância da vida”, observa Tenório. “O negro pobre, a fim de saber como enfrentar logo o racismo, não tem tempo para viver a infância, não passa pela fase da ingenuidade. Pessoas negras entendem a violência e isso me fez pensar sobre qual foi o momento em que me dei conta de que o que acontecia ao meu redor era por causa da cor da minha pele.”
Foi com tal arcabouço que Tenório enfrentou a escrita do romance, marcada pela resiliência dos personagens – especialmente diante da violência policial, descrição, aliás, que consome várias páginas do livro. “E era para ser maior, mas acabei cortando. Eu quis incomodar o leitor, que precisava sentir algum incômodo.”
O efeito é bem sucedido, mas não é apenas pelo espanto diante dos acontecimentos que a leitura mexe com o leitor – Tenório é hábil também na construção da linguagem, apresentando um narrador em primeira pessoa que assume também a função da segunda pessoa. “Busquei, com isso, tanto convocar o leitor a participar da história como apresentar um falso narrador em segunda pessoa, pois é Pedro quem realmente narra.”
O filho, de fato, é o eixo condutor da trama e sua busca pelo entendimento de quem foi o pai remete a uma outra paixão literária do escritor: Hamlet, de Shakespeare. A epígrafe do livro, aliás, foi retirada da peça (uma frase de Bernardo: “Quem está aí?”) é uma pista sobre a incessante busca de Pedro. “Eu sempre quis contar a história do pai fantasma, do pai ausente”, comenta Tenório. “Aqui, diferente do texto shakespeariano, não há vingança, mas, ao reconstituir os passos do pai, Pedro descobre as contradições, as mágoas.”
As referências literárias prosseguem em um dos mais belos (ainda que triste) momentos do livro: quando Henrique, que é professor, finalmente conquista a atenção da classe ao explicar Crime e Castigo, de Dostoievski. “A literatura faz alguma diferença e essa obra ajuda a modificar algo que está falido”, comenta Tenório. “É curioso como escritores negros norte-americanos recorrem muito a Dostoievski, sem explicação. Talvez porque ele fez diferença na construção da literatura.”
O Avesso da Pele é uma das grandes apostas nacionais da Companhia das Letras para este ano – os direitos já foram vendidos para Itália e Portugal, além da adaptação cinematográfica para a RT Features.
TRECHO
“Às vezes você fazia um pensamento e morava nele. Afastava-se. . .Construía uma casa assim. Longínqua. Dentro de si. Era esse o seu modo de lidar com as coisas. Hoje, prefiro pensar que você partiu para regressar a mim. Eu não queria apenas a sua ausência como legado. Eu queria um tipo de presença, ainda que dolorida e triste. E apesar de tudo, nesta casa, neste apartamento, você será sempre um corpo que não vai parar de morrer. Será sempre o pai que se recusa a partir. Na verdade, você nunca soube ir embora. Até o fim você acreditou que os livros poderiam fazer algo pelas pessoas.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.