Por Ubiratan Brasil
No final dos anos 1980, o diretor Antunes Filho (1929-2019), um dos mais importantes do teatro brasileiro, desejava mesclar a obra do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) com as histórias de As Mil e Uma Noites, clássico livro da literatura árabe. Para isso, convidou um dramaturgo ainda iniciante, Samir Yazbek, para a empreitada. O projeto começou a ser rascunhado, mas não concluído. Com a morte de Antunes, Yazbek decidiu retomar a peça em homenagem ao grande encenador. Com o título provisório de O Outro Borges, o trabalho está quase finalizado e aguarda o fim das restrições da pandemia para estrear em um teatro do Sesc – a esperança é que aconteça ainda no segundo semestre.
Segundo Yazbek, aos poucos ele e Antunes perceberam que a obra de Borges era rica o suficiente para a elaboração de uma peça. “Foi assim que chegamos ao conto O Aleph como base ficcional para a dramaturgia”, conta o dramaturgo, em primeira mão, ao Estadão.
“A primeira ideia surgiu a partir do que nos estimulava o próprio Aleph, a ‘pequena esfera de cor tornesol, de um fulgor quase intolerável’, assim descrita por Borges”, comenta Yazbek. “O argumento que Antunes propunha estabelecia um contraste entre as simbologias dessa esfera e a aspereza do mundo material, representada, na peça, pela desapropriação da casa de Borges (personagem principal da obra), em função da construção de uma linha do metrô. O metrô, portanto, ameaçava a casa que continha o Aleph – uma metáfora para abordarmos a decadência da cultura no mundo contemporâneo.”
No início do projeto, há mais de 30 anos, Antunes e Yazbek cogitavam de ter Raul Cortez no papel de Borges – agora, o protagonista e o resto do elenco estão sendo cogitados. O dramaturgo chegou a escrever duas versões: uma antes e outra depois de uma viagem a Buenos Aires, onde ele conheceu os lugares que Borges frequentou. Lá, encontrou-se com a viúva do escritor, Maria Kodama. “Ela compreendeu o que eu procurava deixar claro para todos (inclusive para Antunes): só me interessaria recriar a vida e a obra de Borges, se eu pudesse ir além de uma perspectiva meramente biográfica.”
Um dos motivos de o projeto não ter decolado na época foram as regras impostas por Antunes Filho. “Ele era um homem extremamente exigente e precisava de parceiros que estivessem à sua altura”, reconhece Yazbek. “Quando o conheci, ele já era um artista consagrado, com larga experiência no teatro nacional. O fato é que precisei amadurecer como autor – e também como indivíduo – para corresponder ao desafio.”
Assim, mesmo que cada um cuidasse de seu trabalho, eles eventualmente voltavam à peça. “Ao longo de duas décadas, eu sempre voltava ao texto, de alguma forma”, explica Yazbek. “Conversando com Antunes, eu amadurecia as minhas ideias, muitas vezes sem saber que o fazia. E Antunes não era nada paternalista comigo, no sentido de querer acompanhar as versões que eu escrevia. Ele estimulava a minha solidão enquanto autor.
Às vezes telefonava para me perguntar se eu estava com medo de ficar sozinho. Se eu dissesse que não, ele julgava que eu estava no caminho certo para me tornar um autor.”
Quando o diretor foi internado, no ano passado, Yazbek sentiu a necessidade de finalmente concluir o projeto. “Quando conversei com Antunes no hospital, ele ainda estava lúcido. Em determinado momento, ciente do risco de perdê-lo, falei do meu desejo de retomar esse projeto. Ele me olhou como quem não acreditava no que eu dizia. Afinal, aquela não era a primeira vez em que eu manifestava esse desejo”, conta o dramaturgo. “A partir da morte de Antunes, contudo, fui tomado por uma profunda necessidade de finalizar a peça. O recolhimento propiciou-me entender o que, talvez, andasse me travando.
Intimamente, senti-me no dever de retribuir, com uma peça bem escrita – o que Antunes Filho esperava -, o tanto que recebi dele ao longo dos anos.”
Assim, o trabalho foi retomado e amplamente modificado – tudo foi praticamente reescrito. Apenas o conto O Aleph, como metáfora da cultura, foi mantido. “O embate com as forças do progresso, representadas pela linha do metrô, também permaneceu. A peça, no entanto, ganhou novas camadas. Creio que ela se beneficiou de um olhar mais épico, no sentido brechtiano, não pela noção de uma ‘interpretação distanciada’ ou mesmo pela busca de um ‘teatro narrativo’, mas pelo ganho da perspectiva social”, explica Yazbek.
O título da peça, O Outro Borges, também ganhou força não apenas por tratar do conflito entre a persona pública do autor e a sua subjetividade, mas, conta Yazbek, para destacar a personagem do “jovem Borges”, já presente na versão inicial e que representa, no atual contexto, a possibilidade de impedir o declínio dessa cultura.
Na trama, Borges, já velho e doente, planeja viajar com a mulher amada quando descobre que está prestes a morrer. Mesmo assim, é necessário que ele viva um pouco mais para preparar seu legado. “É como se a morte de Antunes tivesse me encorajado a tentar realizar, finalmente, o que ele tanto esperava que eu realizasse ”
“Por intermédio dessa personagem, a própria noção de cultura passou a ser problematizada, na medida em que Borges foi, muitas vezes, considerado elitista e até acusado de se aproximar da ditadura militar argentina, embora a tenha criticado em diversas declarações que deu ao longo da vida”, observa Yazbek. “De todo o modo, o embate arte/sociedade tornou-se central na atual versão da peça, ensejando uma parábola para sondar a sociedade brasileira, tão injusta e tão desigual. Foi por isso que decidi retirar os nomes próprios das personagens, para assumir que o momento histórico brasileiro é mais importante do que ser fiel à obra ou à vida de Borges. Trata-se do meu Borges.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.