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Nos ombros do gigante

A região conhecida como o leste da Europa, onde ali atualmen­te eclodiu a guerra deflagrada entre a Rússia e a Ucrânia, é cortada pelo Rio Moldava que atravessa o território de alguns países da região, inclusive a atual Tcheca, cuja capital, Praga, está ancorada em suas margens.

Ali viveu o músico Smetana (1824-1884), nascido na Boêmia, autor de uma extraordinária música, retratando, o Rio Moldava. A música recebeu o nome do rio: “O Moldava”.

Os mais importantes apreciadores da denominada música clássica, quase todos, criticam as peças descritivas, o que, para nós, os leigos, revela um caminho lógico difícil de ser trilhado: será possível existir uma obra de arte criada pelo homem que não espelhe e descreva a sua experiência vivida? “O Moldava” é uma belíssima música descritiva.

O rio corta uma região atingida pela deflagração de constantes conflitos bélicos. A Primeira e a Segunda Grande Guerra passearam por ali; a denominada I Guerra Fria ali nasceu, cresceu e morreu. A atual nação Tcheca até bem pouco tempo era a Tchecoslováquia. Até mesmo os países mudam de nome. O rio Moldava não muda de nome.

No passado alguém perguntou a um filósofo se ele conhecia mais ciência do que Platão e Aristóteles. Sim. Com certeza, respon­deu, eu enxergo o mundo muito mais longe do que eles conhece­ram. Não seria um atrevimento seu afirmar que a sua ciência enseja ver mais distante do que os sábios gregos?

Respondeu que não há nenhum exagero. Eu subi nos ombros de Platão e de Aristóteles, daí resultando que vejo muito mais do que eles enxergaram. O episódio recebeu o nome de “nos ombros dos gigan­tes”. Até hoje se discute a origem da narrativa que acompanhando um dos ângulos da vida registra uma maior perspectiva histórica.

Quem visita as margens do rio Moldava em Praga, ali perto, há uma estátua, elaborada em ferro preto, estampando um homem, vestindo um terno, usando chapéu, sentado sobre os ombros de um gigante. A estátua é nossa contemporânea.

O homem do chapéu preto está montado nos ombros de um gigante que de pé está vestindo também um terno preto. Este se­gundo homem não tem cabeça e nem mãos.

Ao contrário daquele outro que no passado afirmava ter montado nos ombros dos gigantes Platão e Aristóteles, o nosso contemporâneo de Praga está trepado nos ombros de um gigante sem rosto e sem mãos. A estátua encontra-se bem próxima do rio Moldava, no bairro judeu. Mas quem é este pobre homem que subiu nos ombros de um gigante decapitado?

Um anônimo respondeu que se trata de Franz Kafka, um escritor que nasceu, viveu e morreu naquelas bandas. Escreveu dois pequenos livros (O Processo e Metamorfose). Pouco antes de morrer, solicitou que seus livros fossem queimados. Não foi obedecido, ainda bem, pois seus pequenos livros são considerados as obras primas do século XX!

Os dois livros do escritor Franz Kafka (1883-1924), que viveu no até então denominado Império Austro-Húngaro, conseguiu subir nos ombros de um gigante decapitado e sem mãos. Assim conseguiu enxergar tão longe que seus dois pequenos livros hoje em dia são en­contrados em todas as livrarias. Inclusive nas livrarias brasileiras.

São livros de cabeceira ensejando a oportunidade de serem lidos uma, duas e não se sabe quantas outras vezes, ouvindo-se a miste­riosa música composta por Smetana, “O Moldava”, tudo para que se torne possível também subir nos ombros do gigante decapitado.

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