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No livro ‘Sede’, Amélie Nothomb une humor e drama no relato em 1ª pessoa de Jesus

Por Ubiratan Brasil

O homem, apesar de seus inúmeros poderes, acompanha impassível seu julgamento – diante dele, pessoas que antes agradeciam suas bondades, agora o desprezam e pedem sua condenação. Diante da imperturbável reação do réu e do acúmulo de acusações, não resta ao juiz outra decisão que não a pena máxima – a crucificação. Em Sede, o relato em primeira pessoa não denomina o personagem em nenhum momento, mas logo o leitor descobre que se trata de Jesus Cristo.

Escrito pela belga Amélie Nothomb, o livro (publicado agora pela editora Tusquets) traz os últimos momentos e reflexões do Nazareno, que reconta sua própria Paixão, reescrevendo a história sagrada com um olhar transgressor, ainda que lírico e filosófico, e com constantes toques de humor.

Apesar de acusações esparsas de blasfêmia e de cartas repletas de insultos, Amélie recebeu elogios pela obra vindos da imprensa europeia, especialmente pela bela reflexão – ou seria meditação? – sobre o que significa ter um corpo. Sim, Jesus se alegra com detalhes infantis, como a descoberta da gravidade a partir do próprio peso, ou mesmo do prazer de dormir e sonhar.

Mas o que realmente marca a existência de um corpo são suas necessidades e a sede é a mais significativa. “Sentir a falta desse líquido é a melhor prova de estar vivo”, comenta Amélie Nothomb ao Estadão, em entrevista por e-mail. “A sede é o estado místico por excelência.”

Metafísica

Disposta a apresentar o que considera ser Evangelho do Corpo, a escritora de 55 anos conta ter uma longa relação com o personagem, o que lhe trouxe confiança para escrever. “Meu pai me contou sobre Jesus pela primeira vez quando eu tinha 3 anos. Logo me apaixonei por esse personagem, que se transformou em uma espécie de super-herói. Escrever este livro foi minha busca metafísica mais longa e importante.”

Celebridade na Europa, onde seus livros normalmente questionam concepções convencionais e conservadoras, Amélie insiste que Sede não é um livro religioso, mas o romance sobre um homem que aceita uma dor infame. “A noção do martírio como valor é uma aberração da qual ainda hoje somos tributários”, comenta ela, que espera não ter a posse da verdade – apenas expressa sua visão do Cristo e de suas incertezas.

Enquanto escrevia, Amélie reconhece que se alimentava de conceitos nada ortodoxos, como o de não acreditar que Jesus seja o filho de Deus e que, humano como todos nós, só se distinguiu por se colocar disponível para uma tarefa incomum. “O sacrifício ao qual ele se entregou é um erro”, afirma. “A crucificação de Cristo é pior que inútil – é tóxica. Um ato que deveria nos salvar, mas que, não apenas não nos salvou, como ainda nos condenou.”

Leitora dos quatro evangelhos canônicos (os escritos por Mateus, Marcos, Lucas e João), nos quais observou importantes lacunas como a importância do corpo, especialmente na crucificação, Amélie preferiu apoiar-se mais em romances semelhantes ao seu, por trazer uma visão mais humanista do Nazareno. Algo como O Evangelho Segundo Jesus Cristo, do português José Saramago (“Uma obra-prima – eu o considero magnificamente cruel e violento”) e O Anticristo, do alemão Friedrich Nietzsche (“É o filósofo que faz as melhores perguntas”).

Em Sede, Amélie apresenta Jesus em sua cela enquanto aguarda a crucificação no dia seguinte. Como não consegue dormir, relembra fatos – alguns recentes, como os tragicômicos depoimentos que acabara de ouvir no julgamento, pessoas beneficiadas por seus milagres e que agora o condenam, desde o antigo cego que condena a feiura que vê no mundo até o ex-hanseniano que reclama por não receber mais esmolas.

Fracasso

“Sou um homem, nada que é humano me é estranho”, reflete Jesus. “Entretanto, não entendo a natureza daquilo que os dominou no momento de vociferar aquelas abominações. E considero minha incompreensão um fracasso, um erro.”

Cristo também relembra o quão estranho era Judas, homem que se desmerecia em comparação aos outros apóstolos, além de sentir prazer em desmotivar quem estava ao seu redor. Sente saudades do pai, José, “homem admirável, que não falava mais que eu e minha mãe”. E de Madalena: “De todas as alegrias que vivi com ela, nenhuma se igualou à contemplação de sua beleza”.

Com humor agridoce, o Filho de Deus busca apresentar sua versão dos fatos e minimizar o que será apresentado como sagrado para as gerações futuras. “Esclareço esses pontos porque não é o que será escrito nos Evangelhos. Por quê? Ignoro. Os evangelistas não estavam ao meu lado quando aconteceu. E não importa o que possam ter dito, não me conhecem. Não estou bravo com eles, mas nada é mais irritante do que as pessoas que, sob o pretexto de amar você, têm a pretensão de conhecer você de cor.”

Ao final, cumprida sua missão, Jesus pondera os acontecimentos e, a despeito de perdas e ganhos, a sensação que o domina é a de uma imensa solidão.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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