Por Luiz Zanin Oricchio
Há um momento muito especial de Narciso em Férias. Dá-se quando o entrevistador passa a Caetano Veloso um exemplar da revista Manchete estampando fotos da Terra, tiradas pela primeira missão lunar. O músico pega a revista, tomado pela emoção, e reconhece a foto: “É essa mesmo…”, balbucia, lembrando-se de tê-la visto durante sua prisão, em 1969. Não é o único momento de emoção deste longo depoimento intitulado Narciso em Férias, dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil (os mesmos diretores de Uma Noite em 67). O filme foi apresentado no Festival de Veneza e pode ser visto na Globoplay.
O depoimento todo é muito comovente e refere-se à experiência de prisão de Caetano Veloso durante a ditadura militar. O título é o mesmo do capítulo do livro de Caetano, Verdade Tropical, no qual relata essa passagem de sua vida.
A prisão reveste-se de uma tonalidade kafkiana, sem que o autor checo de O Processo e Metamorfose seja citado. Caetano conta que os policiais chegaram pela manhã ao seu apartamento, na Avenida São Luis, no centro de São Paulo. Puseram, ele e Gilberto Gil, num camburão e levaram-nos para o Rio, onde foram jogados em celas solitárias.
O aspecto marcante dessa história, digna de Kafka, é os prisioneiros não saberem sequer do que eram acusados, assim como Joseph K., em O Processo. Faz parte da punição o prisioneiro ignorar qual é seu suposto “crime” e não saber quando será interrogado e julgado.
Pela narrativa de Caetano, acompanhamos todo um processo de dissolução de personalidade ocasionado pela prisão. Na solitária, ele começa a imaginar a vida sendo apenas aquilo ali e tudo o mais, a sua existência anterior, a música, os shows, os amigos, os amores, como partes de um sonho. “La vida es sueño”, dizia Calderón de la Barca. Mas pode ser um pesadelo também.
Outro momento, mais terrível, é evocado quando já liberto, na Bahia, Caetano vê sua imagem no espelho e não a reconhece. Narciso, privado de espelhos durante o tempo de prisão, leva um susto ao mirar aquela imagem. Não é nem que não se reconheça. O espanto é ainda pior: o que é essa “coisa” aí refletida? Ver-se como objeto, um ser estranho: é quando o processo de dessubjetivação chega ao clímax. Apenas interrompido pela voz do pai, que chega da rua e interpela o filho, com uma exclamação do tipo “o que fizeram com você?” A voz indignada do pai restabelece um eixo mínimo de equilíbrio e a subjetividade renasce. Prato cheio para um psicanalista.
Caetano faz a narrativa de momentos objetivamente muito tensos, como aquele em que, durante uma saída da cela, julgava que ia ser fuzilado. Na verdade, estava sendo conduzido ao barbeiro, para seu alívio. Tanto que “comemora” ser despojado de sua vasta cabeleira da época, apenas pelo fato de continuar vivo. Em outra passagem, conta não ter o que ler em sua cela. Para se distrair, lia um jornal velho deixado no chão. Até que lhe chegam dois livros, O Bebê de Rosemary, de Ira Levin, e O Estrangeiro, de Albert Camus. Ambos de conteúdo bastante inadequado para um prisioneiro. Mesmo assim, eram leituras, um presente do editor Ênio Silveira, detido no mesmo quartel.
Há momentos ternos como quando Caetano evoca um sargento bondoso, que deixava a então mulher do músico, Dedé, entrar na cela e ficava vigiando no corredor para ver se não chegava alguém. Ou os momentos de música, quando Caetano evoca a canção dos Beatles Hey Jude como aquela que sinalizava que algo de bom ia acontecer, até mesmo sua libertação. Irene, feita em homenagem à sua irmã mais nova, dona de um sorriso maravilhoso. E Terra, inspirada na fotografia de Manchete, composta apenas dez anos depois da sua libertação.
No mais, o filme usa um despojamento franciscano para extrair o máximo da potência narrativa do artista. Caetano fala, contra um fundo neutro, para uma câmera ora próxima ora mais distante. As variações de enquadramento são mínimas. Há pouca música. A fala é eloquente em sua naturalidade. E os silêncios dizem muito, nos momentos em que a emoção trava a palavra. Essa simplicidade de cenário lembra, em alguma coisa, o dispositivo enxuto criado por Eduardo Coutinho, o maravilhoso cineasta de Edifício Máster e Jogo de Cena. Dispositivo minimalista, uma cadeira, um cenário neutro, um interlocutor, para que a subjetividade de quem fala possa emergir em concentração máxima. E atingir o espectador no centro de sua sensibilidade.
Narciso em Férias é um mergulho intimista numa experiência de horror vivida meio século antes. O horror marca. “Uma vez que você foi preso, você fica para sempre preso”, lhe disse um amigo, o multiartista baiano Rogério Duarte. Evoca não apenas esse mergulho do seu personagem no horror, mas é testemunho político de um tempo em que era possível buscar uma pessoa em sua casa pela manhã, levá-la para qualquer lugar, sem justificativa, sem qualquer garantia, e fazer dela o que bem se quisesse, sem acesso a um advogado ou direito a um habeas corpus Sem que ela soubesse sequer do que era acusada. Milhares de outros brasileiros foram expostos a essa condição. Muitos não sobreviveram para contar o que passaram.
No fim, Caetano fica sabendo o motivo pífio da detenção. Havia sido acusado, pelo apresentador da TV Record Randal Juliano, de, num show, haver parodiado de forma desrespeitosa o Hino Nacional Brasileiro. A denúncia, além de ridícula, era infundada. Mas o que isso importava no Brasil do Ato Institucional nº 5, pelo qual as garantias individuais haviam sido abolidas?
São apenas velhas e lamentáveis lembranças? Infelizmente não. O filme chega ao público em momento tristemente propício. Em seu discurso de 7 de setembro, o presidente Jair Bolsonaro voltou a elogiar o golpe militar de 1964, que instaurou uma ditadura de 21 anos no País. A democracia vê-se de novo atacada e corroída por dentro. Grupos radicais pedem a volta da ditadura, e mesmo a edição de um novo Ato nº5. O País está doente e parece esquecido das lições do seu trágico passado. Em chave de emoção e lucidez, Narciso em Férias é uma forte advertência para não repetirmos como farsa o que já vivemos como tragédia nacional.