Há 47 anos, completados neste sábado (23), uma das maiores lendas do futebol mundial, Manuel Francisco dos Santos subiu as escadarias dos vestiários do estádio Palma Travassos, para deixar registrado na história da Joia de cimento armado, seu último ato como um dos mais célebres artistas da bola, uma espécie de Charles Chaplin dos gramados. Com seu jeito desengonçado, o Anjo das Pernas Tortas iria marcar seu último gol oficial, de um total de 283 assinalados. Aos 38 anos, no ocaso de sua brilhante carreira, Garrincha venceu o goleiro do Comercial, Paschoalin, e empatou o amistoso entre Comercial e Olaria, em 2 a 2. O dia? 23 de março de 1972.
“O Garrincha não parecia ser jogador, uma pessoa famosa. Hoje, eu fico feliz de ter tomado um gol dele. Ele tinha a condição técnica dentro de si, mas já não tinha corpo para aquilo. Mas o pouquinho que ele fez, foi o bastante para podermos rever o que ele tinha feito”, disse o arqueiro Paschoalin.
A bola chegou aos pés de Mané Garrincha depois de Paschoalin espalmar uma bola que veio forte, em um chute cruzado. No rebote estava o maior ponta-direita da história do futebol mundial, um jogador que desafiava a lógica e contrariava tudo aquilo que se esperava de um jogador: o físico perfeito.
No caso de Garrincha, as hipóteses mais prováveis são de que ele já nasceu com joelho valgo (popularmente conhecido também como ‘joelho para dentro’) ou o ex-atacante do Botafogo e da Seleção Brasileira foi vítima da poliomielite quando criança, o que fez com que o seu joelho fosse ‘para dentro’.
E por que ele conseguia correr e jogar futebol? A resposta é porque os seus joelhos tortos tinha uma curvatura entre 2,5 e 5 centímetros, o que, clinicamente falando, é um grau leve e permitia ao ‘Mané’ fazer tudo o que fazia com a bola nos pés.
No Olaria, onde encerrou a carreira, Garrincha fez apenas 10 jogos, de fevereiro a agosto daquele ano. Venceu duas, empatou quatro e perdeu quatro. Seu único gol foi no amistoso contra o Comercial de Ribeirão Preto.
A estreia contra o Flamengo levou 50 mil torcedores ao antigo Maracanã, um estádio construído para a Copa de 1950 e que tinha capacidade máxima para até 200 mil expectadores, e que na Copa de 2014, foi reduzido para 74 mil lugares.
Um dos ídolos da história gloriosa do Botafogo carioca, o time da ‘Estrela Solitária’ e que, ao lado do Santos, formavam a base da seleção brasileira no final da década de 1950 e no início da de 1960, Garrincha chegou ao time e, logo no primeiro treino, deu trabalho ao lateral-esquerdo Nilton Santos, outro gigante do futebol mundial.
No dia 10 de junho de 1953, Nílton Santos teve um dos treinamentos mais difíceis da sua carreira. Garrincha chegava ao Botafogo para um teste e foi recebido pelo técnico Gentil Cardoso, que o colocou para jogar de ponta direita no time reserva. E quem marcaria Garrincha, até então desconhecido? Nílton Santos, o lateral-esquerdo da seleção brasileira. Confira abaixo o relato do treino no livro Estrela Solitária, a biografia de Garrincha, de Ruy Castro.
“Quando aquele ponta novato dominou a bola e parou para esperá-lo, Nílton partiu tranqüilo para desarmá-lo. Tranquilo até demais – porque, quando se deu conta, já havia sido driblado para fora. Correu atrás dele e, quando emparelharam, o ponta freou cantando os pneus. Ficaram de novo frente a frente. Nílton entrou duro para assustá-lo, mas foi driblado outra vez – e do mesmo jeito. Em outra jogada, minutos depois, o pontinha cometeu a suprema indelicadeza e enfiou-lhe a bola entre as pernas. Até então, Nílton Santos nunca permitiria tal desfeita a ninguém. Tudo isso é fato, mas o tempo exagerou o que aconteceu. Os relatos futuros criaram a ilusão de um fantástico baile de Garrincha em Nílton Santos. E não foi bem assim. Houve lances em que Nílton Santos também desarmou Garrincha com facilidade e igualmente o driblou”.
O relato acima explica a correria dos dirigentes do Botafogo após o treinamento para fazer Garrincha “assinar qualquer papel” para segurá-lo. Nílton Santos foi consultado e deu a sua opinião favorável. “O garoto é um monstro. Acho bom vocês o contratarem. É melhor ele conosco do que contra nós”.
Anos depois, Nílton lembrou daquele dia com saudade. “Eu vi um cara todo estranho, todo torto e pensei: ‘É mais um que vem treinar’. Não era. Balançou e passou por mim várias vezes. Eu perguntei: ‘O que é isso?’. Nem ele sabia explicar aquele drible. Ele ia levando a bola e de repente escapava sem o marcador nem notar”.
Bicampeão mundial pela seleção brasileira, em 1958, na Suécia, no despertar de Pelé para o futebol mundial, ao título de 1962, na Copa do Chile, onde se transformou em um dos maiores jogadores da competição quando o Rei se retirou por contusão, Mané também passou pelo Corinthians, em 1966, Flamengo, em 1969 e, finalmente, o Olaria, um modesto time da Zona Norte do Rio.
Novamente Ruy Castro narra em ‘A Estrela Solitária,’ a angústia do artista ao pressentir o pano cerrando à sua frente:
Agora que não precisava ser tão assíduo, Garrincha ia todo dia ao campinho da rua Bariri. Ninguém lhe pedia para treinar ou fazer ginástica. Deixavam-no à vontade, mas, por conta própria, dava duas ou três voltas ao redor do campo, quase sempre caminhando. Às vezes arriscava uma corridinha. Gostava também de participar das brincadeiras de bobo com os outros jogadores – que nunca o deixavam ser o bobo.
A tristeza era evidente nos seus olhos injetados, como no dia em que admitiu para Roberto Pinto [técnico]: “Eu sinto tanto não poder fazer mais o que eu fazia, Roberto”. Ainda bem que Mané conseguiu deixar para a história do futebol ribeirão-pretano um lampejo de sua genialidade.