Você ouve uma música, identifica-se com ela e fica imaginando o que ou quem teria inspirado o compositor. Versos com rimas perfeitas e tudo mais… Vou dar um exemplo de como surge essa tal dica. Estou compondo um samba a partir da conversa que tive com meu amigo Marcelão uma noite lá no Bar da Celina. Já tínhamos dado um banho na garganta, estávamos ali encharcando o verbo quando ele disse que estava de guerra com sua primeira-dama havia já alguns dias.
“Buenão, meu irmão, ela estava a fim até de uma separação e coisa e tal, bicho (ele usa esse termo criado por Roberto Carlos)”. Aí eu enquadrei o sujeito: “Acho que você aprontou feio desta vez”. E ele: “Bicho, fui jogar minha peladinha com a turma da sexta e prometi que assim que terminasse o jogo nem banho iria tomar pra poder sair com ela. Sabe como é, né, bicho?”
Jantar de “niver de casório”, mulher valoriza muito datas comemorativas, até ai tudo beleza, parceiro. Segue o barco. “Buenão, a pelada não havia acabado quando chegou lá no bar da quadra um grupo de sambistas de primeira. Veja só: Peruca do Pandeiro, o Bacon do Surdo e Berimbau com seu cavaquinho. Estavam acompanhados de umas moças e mandaram ver só sambas das antigas, bicho. Minha praia, ‘mermão’.”
E Marcelão prosseguiu: “Minha consciência dizia: ‘Vá pra casa, bicho, sua mulher tá te esperando pro jantar’. Mas meu coração retrucava, bicho: ‘Um samba destes não dá pra perder’. E fui ficando, liguei pra ela, até a convidei pra comemorarmos nossa data de união em ritmo de samba, mas ela queria o jantar e eu fui ficando…”
“Pra finalizar: cheguei em casa já era madrugada, vi que tava na marca do pênalti e, pra não fazer barulho, abri a porta com chave de algodão e tirei os sapatos pra não acordá-la. Mas dei azar, bicho, esbarrei na mesinha, fez um baita barulho. Daí ela surgiu na sala, saindo fogo de suas palavras. E, com toda a razão, armou aquele barraco, bicho, estamos de mal até hoje.”
Depois de ouvir o sermão do Marcelão, disse a ele: “Cara, as coisas vão se acertar, mas sua história vai dar um lindo samba”. E é o que estou fazendo, já está na fase de lapidação. Vou contar outra história que o saudoso Kiko Calil me revelou. Ele disse que havia empresariado três shows de Toquinho e Vinícius de Moraes, um aqui em Ribeirão Preto, outro em Franca e o último, em São José do Rio Preto.
Kiko contou que estava com Vinícius de Moraes em um hotel na cidade de São José do Rio Preto, Toquinho dormia, o poeta de pijamas com seu inseparável copo de uísque com algumas pedrinhas de gelo numa das mãos, na outra um gravador – naquela época os gravadores eram enormes. Ele ali bebericando com Kiko, até que disse: “Sabe, Kiko, o Toco (era assim que ele se referia a Toquinho) fez uma música linda e faz mais de um mês que ando com este gravador com a melodia gravada procurando um tema, um motivo para me inspirar e nada.” Kiko disse: “Calma, Vini, quando menos você esperar vai acontecer”. E continuaram o papo na mesinha do hotel.
Sobre a mesinha havia um jornal da cidade com enorme manchete de capa: “Fulano se suicidou”. Vinícius, bebericando, fixou o olhar na tal manchete e na maior alegria disse: “Kiko, olha aí o que eu estava procurando.” Kiko estranhou: como aquela triste manchete de jornal poderia tocar a veia do letrista? Mas tocou, e o poetinha se lembrou de um antigo vizinho que teve em Niterói e que tinha como companhia um papagaio e um gato.
Se você que tem o hábito de ler minhas crônicas quiser ouvir a música, o nome da canção é “Um homem chamado Alfredo”. A letra é praticamente a história que contei. “Ninguém sabe o que passa na cabeça de um suicida, Alfredo, fechou frestas e janelas de sua casa, abriu o gás do fogão, levando com ele seu louro e o gato de estimação.” Sempre que cruzo com pessoas idosas sozinhas, lembro-me do Alfredo.
Sexta conto mais.