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Música caipira e sátira política de Alvarenga e Ranchinho

O historiador Adonias Alfredo Camargo afirma que Alvarenga só houve um, mas Ranchinhos foram três. Murilo Alvarenga nasceu em Itaúna, Minas Gerais, em 22 de maio de 1911. Diésis dos Santos Gaia (que nome etéreo para um caipira!), o primeiro Ranchinho, era natural de Jacareí, São Paulo, e veio ao mundo em 23 de maio de 1912. Quem imagina os dois vivendo na roça, pitando um cigarro de palha e observando a vida besta das galinhas passar, bem, está enganado.

Quando Murilo e Diésis se conheceram e começaram a cantar nos circos e nas rádios, nos anos 1930, eles ainda não eram caipiras. De seu repertório constavam gêneros muito urbanos como tangos, valsas e marchinhas de carnaval. Algo curioso costumava acontecer quando eles se apresentavam: em vez de se emocionar com os tangos entoados, a plateia achava a maior graça dos cantores. As pessoas não paravam de rir. Não havia jeito de serem levados a sério. Tanto melhor para eles, que foram espertos e abraçaram essa comicidade.

Começaram a contar anedotas e piadas nos shows, além, claro, de cantar paródias. Nessa época passariam a ser conhecidos no Brasil inteiro como Os mi­lionários do riso. Suas paródias e sátiras políticas deram muito trabalho para o ex-presidente Getúlio Vargas em um tempo em que a censura não permitia que se brincasse com coisa séria. A dupla dormiu muitas vezes no xilindró e, mesmo assim, continuou divertindo muita gente nos anos 1930-1940.

Das suas maiores composições, minha preferida é “O drama de Angélica”. Além do humor fino, o que dizer das rimas, todas em proparoxítonas? “Ouve meu cântico, quase sem ritmo que a voz de um tísico: Magro esquelético. Poesia épica, em forma esdrúxula feita sem métrica, com rima rápida. Amei Angélica: Mulher anêmica de cores pálidas e gestos tímidos. Era maligna e tinha ímpetos de fazer cócegas no meu esôfago. Em noite frígida, fomos ao Lírico ouvir o músico: Pianista célebre soprava o zéfiro: Ventinho úmido, en­tão Angélica ficou asmática. Fomos ao médico: De muita clínica com muita prática e preço módico.

Depois do inquérito, descobre o clínico o mal atávico: Mal sifilítico! Mandou-me célere comprar noz vômica e ácido cítrico para o seu fígado. O far­macêutico, mocinho estúpido errou na fórmula: Fez despropósito! Não tendo es­crúpulo, deu-me sem rótulo ácido fênico e ácido prússico. Corri mui lépido, mais de um quilômetro num bonde elétrico de força múltipla. O dia cálido deixou-me tépido achei Angélica já toda trêmula. A terapêutica: Dose alopática!

Lhe dei em xícara de ferro ágate tomou num fôlego, triste e bucólica. Esta estrambólica droga fatídica caiu no esôfago, deixou-a lívida. Dando-lhe cólica e morte trágica! O pai de Angélica, chefe do tráfego homem carnívoro, ficou perplexo. Por ser estrábico, usava óculos um vidro côncavo, o outro convexo. Morreu Angélica de um modo lúgubre, moléstia crônica levou-a ao túmulo!

Foi feita a autópsia e todos os médicos foram unânimes no diagnóstico! Fiz-lhe um sarcófago assaz artístico todo de mármore da cor do ébano. E sobre o túmulo, uma estatística, coisa metódica como Os Lusíadas. E numa lápide, paralelepípedo pus esse dístico terno e simbólico. Cá jaz Angélica: Moça hiperbólica, beleza helênica. Morreu de cólica”!

Por causa de suas críticas ao político, Alvarenga e Ranchinho foram presos quatro vezes pelo Departamento de Imprensa e Propaganda de seu governo. Mal os shows acabavam e eles eram levados diretamente para o xilindró, onde passa­vam a noite. Até que um dia foram convocados para tocar suas sátiras diante de Getúlio. Os caipiras ficaram receosos, mas foram encontrá-lo.

História contada por eles durante uma entrevista para o Programa En­saio da TV Cultura em 1973: “Chegando lá, nós cantamos todas as músicas, todas as críticas que nós fazíamos dele. E ele gostou, riu muito, se divertiu bastante. E diante de todos os ministros, diante de todos os censores, diante daquela gente toda, ele nos liberou, disse que podíamos continuar fazendo críticas, desde que fosse uma crítica razoável, que não ofendesse o físico nem a moral de ninguém”.

Salve Alvarenga e Ranchinho, inteligência, sagacidade, irreverência, crítica política e a verdadeira música caipira brasileira!

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