Apesar das perdas no incêndio ocorrido em setembro de 2018, o Museu Nacional ainda terá o maior acervo de Egito antigo da América do Sul. A estimativa é do diretor da instituição, o paleontólogo Alexander Kellner.
“Não é querendo mitigar os impactos, porque nós perdemos muito. Mas também conseguimos recuperar muito”, disse ele, durante um bate papo online realizado pelo Museu de Ciências Naturais Joias da Natureza, instituição sediada em Guarujá (SP).
A importância do acervo de Egito antigo, segundo Kellner, é incalculável. “Um dos momentos mais tocante pra mim foi quando recebi a visita do cônsul-geral do Egito. Ele falava das múmias e lacrimejava. Me impressionou. Aquilo era muito importante pra ele. A primeira palavra que disse a ele foi “desculpa”. Foi um pedido de desculpas pelo país”.
Vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o Museu Nacional localiza-se na Quinta da Boa Vista e é a mais antiga instituição científica do Brasil. Foi fundado por D.João VI em 1818. O incêndio de grandes proporções arrasou exemplares raros, como esqueletos de animais pré-históricos, artefatos etnográficos e múmias.
Considerando todas as coleções, o Museu Nacional tinha cerca de 20 milhões de exemplares e estima-se que 15% foi preservado. “Ainda são 3 milhões. E vamos conseguir resgatar mais”, diz Kellner.
Ele também apresenta um quadro mais otimista considerando a representantividade das coleções. “Recuperamos material representativo de quase metade do que tínhamos. Vou dar um exemplo. Digamos que a gente tinha cem fósseis de Rhacolepis [peixes pré-históricos]. Se eu tiver perdido 99, mas tiver preservado um, eu tenho essa coleção representada. Os principais meteoritos nós recuperamos, bem como material antropológico”.
O trabalho de salvamento do acervo ainda não terminou. Havia uma expectativa que as buscas nos escombros avançassem de forma mais rápida, mas houve interrupções devido à pandemia de covid-19. Pouco mais de um mês depois do incêndio, o crânio de Luzia foi encontrado em fragmentos em meio a escombros. Trata-se do fóssil mais antigo já encontrado no continente americano, considerado uma das principais relíquias que a instituição guardava. A expectativa é de que o crânio seja quase totalmente reconstituído. Outros importantes resgates também têm sido apresentados gradativamente.
O diretor reitera que o Museu Nacional continua funcionando, com pesquisas e de eventos, incluindo exposições online e presenciais. A primeira exposição presencial ocorreu apenas quatro meses após a tragédia e foi viabilizada por um convite do Museu da Casa da Moeda do Brasil, que cedeu duas salas de seu edifício, no centro do Rio de Janeiro. A mostra incluiu 160 peças do projeto Paleoantar, dedicado a coletar e estudar rochas e fósseis da Antártica. Entre elas, havia oito peças que foram resgatadas dos escombros do prédio, além de ossos e réplicas de animais pré-históricos.
Recursos
Kellner também apresentou a situação do projeto de reconstrução. Ainda este ano será iniciada a reforma pesada da fachada e do telhado. Além disso, a expectativa é de que, já no ano que vem, o jardim externo esteja finalizado. A conclusão de toda a reforma é estimada para 2026 ou 2027.
A UFRJ coordena a gestão financeira das obras. O projeto completo demanda R$ 380 milhões, dos quais cerca de 65% foram arrecadados. Em 2018, após o incêndio, o Ministério da Educação (MEC) se comprometeu a assegurar um total de R$16 milhões para os projetos executivos de reconstrução. Também em 2018, foi aprovada uma emenda de R$ 55 milhões articulada por deputados federais do Rio de Janeiro. Os recursos foram liberados em 2019. O diretor do Museu Nacional diz esperar contar com a bancada de parlamentares para um novo aporte de peso.
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) também assegurou R$ 50 milhões para revitalizar prédio e acervos. Há também colaborações do setor privado, como a Vale e o Bradesco, e ajudas internacionais. O Ministério das Relações Exteriores da Alemanha, por exemplo, se comprometeu com o repasse de 1 milhão de euros.
Além de reconstruir a sede principal do Museu, o projeto prevê a estruturação do campus de pesquisa e ensino em um terreno próximo. A instituição já contava com um prédio anexo onde ocorriam algumas pesquisas. Parte da coleção de botânica e de vertebrados, por exemplo, foi preservada porque já não era armazenada no edifício principal.
A ideia de ter um campus para pesquisa e ensino e deixar o edifício principal reservado exclusivamente para exposições já era discutida na década de 1990. Se isso tivesse ocorrido, a maior parte do acervo da reserva técnica teria sido salva no incêndio. Para Kellner, faltou vontade política e recursos financeiros para avançar na estruturação do campus.
A ideia deve agora sair do papel. Antes do incêndio, o Museu Nacional tinha cerca de 3 mil metros quadrados de exposição, que reuniam aproximadamente 5,5 mil exemplares. Com toda a atividade de pesquisa e ensino sendo deslocada para o campus, a ideia é que, ao final da reconstrução, ele ofereça uma área 5,5 mil metros para exposição. Para preencher todo o espaço, serão necessários cerca de 10 mil exemplares.
Por isso, toda ajuda é considerada bem-vinda e nem todo apoio chega na forma de recursos financeiros. Colaborações importantes foram feitas para recompor o acervo. Um exemplo é o Universal Museum Joanneum, museu sediado na cidade austríaca de Graz. A instituição doou 2 mil exemplares de material etnográfico. Há também contribuições de pessoas físicas como a doação do diplomata aposentado Fernando Cacciatore di Garcia, que cedeu 27 exemplares de uma coleção greco romana.
O Museu Nacional mantém uma campanha para arrecadação de recursos e de acervo. Segundo Kellner, um dos principais desafios é ampliar o acervo exposto. Para que isso aconteça, ele considera que é preciso trabalhar a credibilidade do país e da instituição. “Precisamos merecer as doações. Precisamos mostrar ao mundo que nós aprendemos. Mostrar que vamos cuidar bem das coleções. Porque é assim que eles vão ajudar”, diz.
Descaso
Além das obras, existe a preocupação com os gastos correntes. Kellner mostrou dados do orçamento do Museu Americano de História Natural, sediado em Nova Iorque, que conta com cerca de US$ 33 milhões anuais apenas para manutenção de suas coleções, não entrando nesse montante o investimento em pesquisa científica. Para essa mesma finalidade, o Museu Nacional recebe atualmente o equivalente a US$ 1,8 milhão, apenas 5,4% da instituição dos Estados Unidos. A estimativa, segundo o diretor, é de que sejam necessários pelo menos US$ 3,7 milhões para garantir a manutenção básica.
“Por que não podemos ter museus de história natural como nos países desenvolvidos? Por que no Brasil tem que ser mais difícil?”, questiona o diretor. Ele lamentou também a falta de investimentos de diferentes governos. Segundo um levantamento histórico realizado por pesquisadores do museu, o último presidente da República que visitou a instituição foi Juscelino Kubitschek. Kellner disse estar escrevendo um romance sobre os bastidores em torno do incêndio. Os personagens serão fictícios. “Mas vai faltar carapuça pra tantas faces”, disse.
Ele citou como símbolo do descaso a situação dos hidrantes do entorno do edifício. Na ocasião do incêndio, os bombeiros tiveram dificuldade pra debelar as chamas porque eles estavam sem água. A Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae), estatal vinculada ao governo fluminense, chegou a ser responsabilizada e multada em R$ 5,6 milhões. Segundo Kellner, mesmo três anos após o episódio, os hidrantes continuam sem água. Dessa forma, os bombeiros teriam a mesma dificuldade se houver um novo incêndio na estrutura remanescente. A Agência Brasil procurou a Cedae, mas não obteve retorno.
Edição: Aline Leal