Parecer do promotor Wanderley Trindade, solicitado pelo juiz Reginaldo Siqueira, da 1ª Vara da Fazenda Pública de Ribeirão Preto, encarregado da ação popular contra os “supersalários” da Câmara de Vereadores, defende a imediata extinção da “incorporação inversa” criada pela lei complementar nº 2.515/2012. A iniciativa partiu da advogada Tais Roxo da Fonseca e do professor Sandro Cunha, ambos ligados ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), com base em reportagens do Tribuna.
O promotor também requer a devolução de todo o dinheiro recebido pelos 99 servidores efetivos desde 2012 e ainda abre espaço para a responsabilização dos vereadores que aprovaram, há seis anos, a referida lei, cujo artigo 7º deu origem ao que os autores chama de “aberração jurídica” – quase uma centena de funcionários aprovados em concurso para cargos com salários abaixo de R$ 2 mil ingressou no Legislativo e imediatamente passaram a receber mais de R$ 20 mil.
Como de praxe, o juiz Reginaldo Siqueira pediu o parecer ao Ministério Público Estadual (MPE) antes de decidir se concederá ou não a liminar solicitada pelos autores da ação para que o pagamento seja interrompido imediatamente. A lei complementar “dispõe sobre a estruturação do plano de classificação de cargos, vencimentos e carreiras do serviço público municipal da administração direta e autárquica, institui nova tabela de vencimentos e da outras providências.
Foi encaminhada à Câmara pela então prefeita Dárcy Vera – na época, no DEM. Naquele ano, uma emenda apresentada pela Mesa Diretora, na época presidida pelo então vereador Cícero Gomes da Silva (MDB), criou o que a advogada Tais Roxo chama de “aberração jurídica” – autorizou a incorporação ao salário do servidor efetivo aquilo que ele recebia quando ocupava cargo comissionado no gabinete de algum parlamentar.
O inciso que criou a “aberração jurídica” (§ 7º) diz que “o servidor efetivo que tenha exercido ou venha a exercer, a qualquer título, cargo em comissão, função gratificada ou atividade com gratificação de gabinete, que proporcione remuneração superior a do cargo de que seja titular, incorporará 20% (vinte por cento), por ano, até o limite de 100% (cem por cento)”.
No serviço público, é praxe que um servidor, ao ocupar um cargo de chefia, possa incorporar ao salário de sua função, quando deixar o cargo em comissão, parte do que recebia a mais como chefe. A emenda fez o inverso – em vez de autorizar a incorporação daquilo “que vier a exercer um cargo de chefia”, acrescentou o termo ”tenha exercido”.
A emenda foi criada em 2012. Nos dois anos seguintes (2013 e 2014), a Câmara promoveu concursos que tinham em comum o reduzido número de vagas (geralmente, apenas uma), salários sem atrativos (sempre inferiores a R$ 2 mil) e a mínima exigência de escolaridade. O objetivo era atrair poucos interessados e permitir a aprovação de apadrinhados de vereadores que ocupavam cargos comissionados (sem estabilidade no emprego) nos gabinetes.
A artimanha deu certo, dezenas de comissionados prestaram os concursos e, mesmo quando classificados distante do primeiro lugar, conseguiram ser nomeados, pois a Mesa Diretora tinha direito, pelo edital, de criar novas vagas a seu bel prazer. Um exemplo é o concurso realizado em 2013 para preencher uma única vaga de “auxiliar de operações (porteiro)”, com salário de pouco mais de R$ 1,3 mil e as atribuições de atuar na portaria, recepção, triagem, lavagem e lubrificação de veículos.
Dezenas de comissionados em gabinetes de vereadores participaram do concurso e nos anos seguintes a Mesa Diretora da Câmara criou novas vagas e foi nomeando os ex-apadrinhados para vagas de porteiros – a Câmara acabou por convocar dezenove candidatos. Há o curioso caso da advogada aprovada em 19º lugar em concurso com nível de escolaridade do ensino fundamental e salário inferior a R$ 1,6 mil que hoje recebe mais de R$ 21 mil.
Outro exemplo é o do servidor publico estadual de nível universitário, aposentado, aprovado em 14º lugar no concurso para auxiliar legislativo, com salário de R$ 1,6 mil, que atualmente recebe mais de R$ 26 mil. A facilidade em ser nomeado e ter salários elevados atraiu parentes dos apadrinhados e a Câmara se tornou uma “grande família” – uma mulher comemorou a efetivação de três irmãs e do marido, enquanto um ex-coordenador legislativo e procurador jurídico celebrou a nomeação de dois filhos.
Um ex-presidente da Câmara (vereador) conseguiu efetivar dois filhos adotivos e um genro, um operador de TV comemorou a nomeação de dois filhos e por aí segue. Todos, sem exceção, trabalharam com algum dos parlamentares da época, ocuparam cargos em comissão, passaram em concursos para cargos com salários de menos de R$ 2 mil e hoje recebem – todos – mais de R$ 15 mil. Para o promotor Wanderley Trindade, a lei aprovada em 2012 é inconstitucional.
“Isso não existe em nenhum município brasileiro. Fizemos uma extensa pesquisa e encontramos situação semelhante em dezenas de cidades, a maioria de Minas Gerais e de Santa Catarina”, conta a advogada Tais Roxo da Fonseca. “Em todas essas cidades as leis absurdas foram revogadas, e quando ocorreu e revogação, cessaram todos os efeitos. Ou seja, a incorporação deixou de existir. Ribeirão Preto é a única cidade brasileira onde a aberração prossegue, mesmo depois de a Câmara extinguir a lei complementar”, completa.
“A lei da incorporação inversa que resultou em imensurável prejuízo ao erário público não gera direito adquirido por ofender todos os princípios fundamentais da Constituição Federal, moralidade, isonomia, legalidade, impessoalidade, irretroatividade da lei, eficiência. Os vícios apresentados pela lei da incorporação inversa são insanáveis, sem qualquer possibilidade de continuar surtindo seus efeitos ao arrepio do Sistema Jurídico Nacional como um todo”, argumenta Tais Roxo da Fonseca.
Vereadores responsabilizados – Segundo o promotor Wanderley Trindade, os vereadores que aprovaram, em março de 2012 o projeto de lei nº 2515, que deu origem a “incorporação inversa”, podem ser responsabilizados pela Justiça. Pelo menos um parlamentar que participou daquela sessão e votou favoravelmente já disse, em entrevista ao Tribuna, que a emenda foi acrescentada sem alarde, sem o conhecimento dos vereadores. É o caso, por exemplo, de Gláucia Berenice (PSDB).A Câmara não teve acesso ao parecer do promotor e só irá se manifetar após o parecer da Justiça.
Medida vai atingir também a prefeitura
Apesar de a lei complementar que deu origem aos “supersalários” ter nascido na Câmara, onde o salário médio dos 99 servidores alcança R$ 7,8 mil, a chamada “incorporação inversa” foi aproveitada por dezenas de funcionários da prefeitura de Ribeirão Preto. Vários comissionados, durante os oito anos dos dois mandatos da ex-prefeita Dárcy Vera (2009-2012 e 2013-2016), ao retornarem aos seus cargos de origem, no inicio de 2017, conseguiram incorporar ao salário o que ganharam durante o período em que foram comissionados.
O caso mais “famoso” é o do engenheiro Clodoaldo Franklin de Almeida, que foi parar no noticiário durante as investigações da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Anexo da Câmara. Na ocasião, os vereadores descobriram que ele, motorista do Departamento de Água e Esgotos de Ribeirão Preto (0Daerp), havia sido “emprestado” informalmente ao Legislativo para acompanhar a obra.
O fato de um engenheiro ter prestado concurso para motorista do Daerp pode se explicado pelo conhecimento da “incorporação inversa” – como Almeida 0ocupou por muitos anos cargos em comissão na prefeitura, ao ser aprovado no concurso e nomeado motorista ele passou a ganhar R$ 11.374,26, valor que recebe atualmente como condutor do setor de hidrometria da autarquia.