Por Adalberto Luque
“Eu e um amigo voltávamos após um pedal na região. Era sábado. Vínhamos pela avenida Francisco Junqueira, sentido Centro-bairro, quando tudo aconteceu. O motorista de um Fiat Mobi vermelho, com placas do Rio de Janeiro, buzinou e jogou o carro contra a bicicleta do meu amigo, que vinha pelo canto da faixa da direita. Eu vinha logo atrás. Então começou a confusão”, recorda o supervisor financeiro Pablo Coutinho.

O motorista teria seguido adiante, andou menos de 100 metros, segundo Coutinho, e parou num semáforo. Os ciclistas se aproximaram sem esboçar reação, mas o homem desceu do carro.
“Ele colocou a mão na cintura, como se estivesse armado. Chamou meu amigo de vagabundo, que bicicleta é pra ficar na calçada. Meu amigo argumentou que não, que a faixa da direita é dos ciclistas e eles teriam que dar uma distância lateral de um metro e meio”, acrescentou.
O homem estava alterado e o ciclista ofendido discou para o telefone 190, da Polícia Militar. A essa altura, outros motoristas e pedestres tentavam acalmar a situação.
“Pediam para o rapaz do Mobi ir embora. Ele continuou ofendendo ciclistas, dizendo que estava trabalhando, enquanto nós estávamos atrapalhando o dia de quem precisa dirigir. Conversei com ele, que aos poucos foi se acalmando. Ele resolveu ir embora”, lembra Coutinho.
Se estava armado, impossível saber. O amigo anotou a placa, mas a Polícia Militar demorou para chegar ao local e eles acabaram ligando de volta, cancelando a solicitação de viatura e seguiram em frente. “Não sem ouvir mais algumas buzinadas e ofensas de motoristas e motociclistas, que consideram o ciclista um estorvo quando, na verdade, devem respeitá-lo sob risco de cometerem infração ou um crime de trânsito”, lamenta o supervisor financeiro.
Comunicação com insultos
Um estudo feito pelo Portal Preply investigou como condutores e pedestres do Brasil e Portugal se comunicam no trânsito. Atendo-se apenas à pesquisa com brasileiros, muitos dos entrevistados relataram que se comunicam no trânsito ou já presenciaram situações de violência, com insultos, uso de palavrões e situações de hostilidades nas ruas e avenidas. Ou já presenciaram situações de violência.
“Nós, da Preply, reconhecemos que algumas situações parecem exigir um cuidado ainda maior com o que comunicamos às outras pessoas — e o trânsito é, sem sombra de dúvidas, uma delas”, aponta a pesquisa.
Tanto condutores, quanto pedestres e ciclistas, têm grandes chances de serem mal interpretados ao fazer um sinal gestual desconhecido, por exemplo. Outra forma de aumentar a temperatura por conta de uma fechada involuntária ou um acidente de trânsito é o tom de voz. Quanto mais alto, maiores as chances de conflitos e discussões acaloradas.
Foi o que aconteceu na tarde de terça-feira (25), na Avenida Presidente Vargas, Alto da Boa Vista, zona Sul da cidade. Uma caminhonete e uma motocicleta se envolveram em uma colisão. Houve discussão acalorada e o motociclista teria apanhado o capacete e desferido golpes na lataria da caminhonete. O dono do veículo partiu para a luta corporal. Agora, além dos danos, os dois terão contas a acertar com a Justiça.
Ao perguntar aos entrevistados como brasileiros vêm interagindo com os demais em ruas, avenidas e estradas, a conclusão foi que confusões envolvendo linguagem gestual ou verbal são muito mais comuns do que se imagina.
Paulistas são os mais grosseiros
A pesquisa constatou que 73,6% dos entrevistados no Brasil já presenciaram agressões no trânsito. Entre os insultos mais ouvidos estão as palavras “idiota” ou “imbecil”.
Outros 48,4% dos entrevistados disseram ter presenciado casos de agressão física no trânsito. Além disso, 40,8% foram vítimas de agressão verbal e 8,4% foram vítimas de agressão física.
Entre os estados considerados mais grosseiros, São Paulo lidera o ranking de condutores mal-humorados e rudes, com 36,2%. O Rio de Janeiro vem em seguida, com 20% e Bahia aparece na terceira posição, com 6,2% das respostas.
Já entre os estados mais gentis, Santa Catarina lidera com 13,4%, seguido por Rio Grande do Sul com 12,6% em segundo lugar. Em terceiro, aparecem empatados, Minas Gerais e Paraná, cada um com 10,8%.
Intolerância no trânsito
A pesquisa concluiu que a impaciência é a principal causa da violência nas ruas, avenidas e rodovias do País. Motoristas, motociclistas, ciclistas e pedestres admitiram que usam frequentemente palavrões no trânsito. Muitos dos quais afirmaram que fazem isso para extravasar a própria irritação no trânsito.
Se os entrevistados forem ofendidos, muitos acabam retrucando na mesma moeda a quem os ofendeu. Mas 64,4% dos entrevistados garantem evitar qualquer tipo de confronto ou responder aos ofensores de forma mais educada.
Nunca é demais lembrar ao leitor que ofensas exageradas podem render um processo por danos morais. Já agressões podem ter desdobramentos na área criminal. Quando os brigões chegam às vias de fato, podem responder por lesão corporal culposa ou dolosa, tentativa de homicídio e, caso se concretize, até mesmo homicídio. Além das penas de prisão, essas agressões também podem seguir na instância Cível e representar prejuízo financeiro adicional ao brigão. Melhor mesmo é evitar.
Resgate de credibilidade

O especialista em trânsito, Anderson Manzoli, concorda com os resultados da pesquisa. “Uma das formas de você entender a saúde mental de uma sociedade, de um grupo, é justamente estudando seu comportamento nos espaços públicos compartilhados. Por exemplo o trânsito. Ele reflete bastante um grupo de pessoas, ao ser colocado no espaço público em comum, como eles se comportam. Como nós sabemos, existe hoje uma impunidade muito grande em relação às leis de trânsito.”
Manzoli é engenheiro civil com mestrado no Departamento de Transportes da Universidade de São Paulo (USP) – São Carlos. Ele destaca que muitas vezes a sinalização é bem-feita, não há falha na infraestrutura e sinalização, mas os desrespeitos acontecem mesmo assim e com frequência.
“Placas de pare não sendo respeitadas, estacionamentos que deveriam ser para algum grupo específico, como idosos, não são respeitados. As pessoas muitas vezes não param nos semáforos, excedem o limite de velocidade ou dirigem sob efeito de substâncias que não poderiam, como álcool ou drogas. Não se vê uma sensação de que esses infratores sofram algum tipo de repressão no trânsito”, explica.
Outro ponto que preocupa: os condutores em geral não enxergam quem está no veículo ou moto a seu lado como alguém que está trabalhando, um pai ou mãe de família, um filho querido. “E muitas vezes acabam não se importando em provocar um acidente. Em vez de agir com empatia, acabam agindo com impulsividade e estresse”, aduz.
Para mudar isso, o especialista em trânsito destaca que é preciso tirar a sensação de impunidade daqueles que desrespeitam a lei. “Quando se desencoraja o motorista ou o motociclista a cometer uma infração de trânsito, acaba, indiretamente, dando um recado para a sociedade. O espaço público tem regras sim, é de todos nós.”
Manzoli aconselha prudência e calma a quem se envolver em um acidente ou discussão de trânsito. Os casos podem ser resolvidos pacificamente. “Mas é a hora em que o ego fala mais forte. A pessoa quer ter razão e descarregar, muitas vezes, toda a sua frustração e raiva naquele momento”, acrescenta.
E se uma discussão ou acidente de trânsito levam uma pessoa a tirar a vida de outra, o engenheiro de trânsito acredita que isso demonstre a falência do Estado e da Justiça. “Hoje, a maioria dos motoristas não confiam no Estado, não acreditam na Justiça. Acham que esses dois elementos perderam seu poder e credibilidade”, aponta.
Quando um motorista envolvido em uma discussão ou batida persegue outro, isso evidencia a falência dos poderes públicos. Manzoli defende que seja feito um resgate.
“O Estado precisa investir mais na educação para o trânsito. Trabalhar com mais fiscalização efetiva, punindo com mais rigor as infrações de trânsito e os comportamentos agressivos que, muitas vezes podem ser flagrados por câmeras. Antes havia mais campanhas de conscientização, hoje está mais raro. É preciso chamar constantemente o motorista para que tenha um comportamento no trânsito um pouco mais acolhedor. Ter mais empatia, aceitar um pouco mais que outro pode errar, mas não pegar quem erra e apenas passar a mão na cabeça. Tem que multar quem erra, se não tiver condições, tirar a habilitação do infrator.”
Acima de tudo, o especialista em trânsito defende que os motoristas filmados ou flagrados em atitudes agressivas sejam chamados para tratamento psicológico, sob pena de perder a habilitação. “É preciso ter esse apoio para entender e mitigar esse comportamento”, conclui.