Luiz Zanin Oricchio
Agência Estado
Morreu nesta quinta-feira, 25 de março, aos 79 anos, o cineasta francês Bertrand Tavernier, autor de filmes como “Round Midnight” (“Por volta de meia-noite”), “A isca” e “Lei 627”. O anúncio da morte foi feito pelo Instituto Lumière, de Lyon, que foi dirigido por ele. Como alguns de seus colegas, Tavernier entrou no mundo do cinema pela via da crítica.
Escreveu em publicações como Cahiers du Cinéma, Positif, Combat, Lettres Françaises, entre outros. É autor de livros, alguns de referência, como “Trinta anos de cinema americano” (em parceria com Jean-Pierre Coursodon), um tijolo de mais de 1.200 páginas, considerado na França a bíblia sobre o assunto.
Admirador do cinema B norte-americano, foi assistente de direção de Jean-Pierre Melville. Estreou como diretor com o episódio “Les Baisers” (“Os beijos”), em 1964. A partir de então, deu início a uma filmografia bastante consistente, com ênfase num cinema narrativo sólido e bem trabalhado.
Amante do jazz, tornou-se mundialmente conhecido por “Round Midnight” (“Por volta da meia-noite”, 1986). Apesar de adotar o título de uma composição clássica de Thelonious Monk, a história é uma homenagem indireta a Charlie Parker, o gênio do bebop.
Um saxofonista de verdade, Dexter Gordon, interpreta o personagem fictício Dale Turner que, na década de 1950, muda-se para Paris em busca de um pouco de paz e um público fiel. Um fã (François Cluzet) tenta fazer seu ídolo sobreviver ao alcoolismo e outros aditivos.
O filme é maravilhoso pela intensidade, história comovente e, também, claro, pela música. A trilha (premiada com o Oscar) é de Herbie Hancock. Dexter Gordon nunca havia trabalhado antes como ator, o que parece inacreditável, tamanha a credibilidade que imprime ao papel.
Apesar do interesse por temas americanos (ele rodou, antes de “Round Midnight”, o documentário “Mississipi Blues”), o foco maior de Tavernier foi a França e sua história. Eclético, filmou de Georges Simenon (1903-1989) “L’Horloger de Saint-Paul” (1972), seu primeiro longa, ao diálogo com Alexandre Dumas (pai, 1802,1870) de “A filha de D’Artagnan” (1994), alusivo ao famoso mosqueteiro gascão.
Homenageou o grande Jean Renoir (1894-1979) de “Une Partie de Campagne” com seu “Um sonho de domingo” (1984). Debruçou-se sobre um crime célebre em “Le Juge et L’assassin” (1976). Em “Lei 627” (1992), desce aos porões do tráfico de drogas sob o olhar de um policial tão obstinado e fanático quanto o Javert de “Os Miseráveis”. Tentou também a ficção científica com “A morte ao vivo” (1980).
Em 1995, a carreira de Tavernier encontrou talvez o seu ápice com o Urso de Ouro concedido pelo Festival de Berlim ao seu “A isca”. O filme concorreu também no Festival de Gramado, com prêmio de melhor atriz para Marie Gillain. Ela faz uma garota que, junto com dois amigos, vive de golpes aplicados em incautos Tensa, bem trabalhada e fluida, a obra foi considerada um comentário cáustico sobre o materialismo e a amoralidade dos tempos contemporâneos.
Bastante diversa nos assuntos tratados, a obra de Tavernier parece convergir na crítica aos desajustes da civilização contemporânea, violenta, excludente, racista. É um cinema que, em seus melhores momentos, alcança aquele tipo de crueza que não exclui o olhar terno voltado aos personagens.
Fiel à sua dupla persona de realizador e historiador, Tavernier finalizou sua carreira com o documentário “Viagem através do cinema francês” (“Voyage à travers le cinéma français”), de 2016. Trata-se da panorâmica sobre uma cinematografia, a exemplo do que fizeram Martin Scorsese (sobre o cinema norte-americano e italiano) e Marc Cousins (uma série sobre o cinema mundial, outra sobre o cinema de mulheres).
Mas há uma diferença, sutil, inscrita nas entrelinhas do filme de Tavernier. Necessariamente abrangente, “Viagem através do cinema francês” mostra empenho em resgatar uma parte da cinematografia francesa demonizada à época da nouvelle vague.
Resgata do limbo aqueles velhos autores detonados pelos “jovens turcos” do Cahiers du Cinéma e mostra como as obras de Jean Delannoy (1908-2008), Claude Autant-Lara (1901-2000) e Henri-George Clouzot (1907-1977) encontram seu lugar numa história mais completa e generosa do cinema francês. Um belo epílogo de trajetória e também um legado à cinematografia que o consagrou.