Edwaldo Arantes *
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A repercussão do meu último artigo foi muito interessante, recebi muitas mensagens, agradeço pelos carinhos e apoios, onde falo sobre as memórias e suas identidades com as lembranças.
Entendo nossa existência como um imenso arquivo, onde nenhum supercomputador inventado ou a ser, pode guardar.
A tal da IA – Inteligência Artificial nas mãos de fascistas e dementes se transformará em catástrofe, jamais poderá catalogar todo o repertório gravado em nossas reminiscências.
Um mistério, como a memória por meio, sei lá, bruxas ou fadas possui a fantástica força de fazer com que momentos, instantes, odores e sabores permaneçam para sempre atados escondidos em nossas mentes.
A taça, a vaca preta e o spumoni da infância na Sorveteria do Spósito.
A sopa de fubá doce nos recreios, o prato de alumínio, as calças curtas e sapatos vulcabrás pretos no Grupo Escolar “Campos do Amaral”.
A canja fumegante nos finais das noites carnavalescas no Clube Paraisense, o carne e queijo do Bar Papagaio.
O silêncio e os passos vagarosos, a fé e a crença dando lugar ao terror das imagens caminhando e balançando sobre os andores.
Os senhores das castas nobres em trajes estranhos, velas crepitando e o medo nos olhos do menino ignorante aos mistérios e enigmas das procissões.
O bálsamo inebriante invadindo o olfato no hall do Cine São Sebastião, seus tapetes vermelhos, sofás em couro preto, bomboniere lotada de guloseimas e a sisuda dona Gê à porta recolhendo os ingressos.
A adolescência chegando ao lado da primeira namorada, a poltrona reservada até as luzes cessarem , a tela expondo as películas de outrora, “E o vento Levou”, Clark Gable e Vivien Leigh, Romeu e Julieta, Leonard Whiting e Olivia Hussey, Dio Come Ti Amo, Gigliola Cinquetti e Mark Damon, Cantando na Chuva, Gene Kelly e Jean Hagen, Casablanca, Humphrey Bogart e Ingrid Bergman.
Depois de meses de espera e timidez, apenas pegar na mão, o primeiro beijo viria muitas sessões depois, a boca recheada de hortelã, sinto até hoje o “Drops Dulcora” nos lábios dela.
Ao apontar o “The End”, rapidamente sair, como o amante furtivo abandonando a alcova, saindo sorrateiro antes da aurora surgir.
Anos depois, minha filhota Marina, pititinha, ansiosa deitada no sofá com as pernas cruzadas e o olhar distante mirando o teto, esperando.
Ao abrir o pote, perplexo, percebi que havia acabado o açúcar, tristeza e quase desespero.
Uma travessa em Cristal Baccarat adquirida à prestação junto a Cá d’Oro, Poços de Caldas, lotada de chocolates tendo o eterno “Sonho de Valsa”, reinando absoluto.
Não tive dúvidas, abri o tradicional bombom em seu papel celofane vermelho, escrito em amarelo, “Sonho de Valsa”, ilustrado por um casal deslizando pelos salões, em dúvida levei ao liquidificador com o leite.
Dali por diante o instrumento usado como uma alternativa à amamentação passou a ser chamado, “Mamadeira Sonho”.
Nossas memórias estão fixadas em nossos cotidianos, quantas vezes nos assaltam fatos que absolutamente estavam esquecidos ou perdidos guardados em segredo, remetendo a um passado, surgindo vivos ao presente, assustando ou alegrando.
Os aniversários, o bolo com glacê e bolinhas prateadas, balas de coco e brigadeiros forrando a toalha alva.
No meu tempo indagavam quantas primaveras, hoje, sessenta e cinco, as primaveras quase sempre são substituídas por invernos rigorosos.
Houve uma vez um verão e um aniversário quando vi pela primeira vez o mar e sua imensidão, não conseguia dominar suas águas, era jogado de um lado para o outro, sacolejando como sentado em uma carroça com rodas de madeira puxada por um burro teimoso.
Minhas águas eram outras, calmas e límpidas dos riachos de outrora, cantarolando a mesma canção, ante a platéia de pedras em silêncio nas Minas Gerais.
Recentemente reli um livro que carrego intensamente nas lembranças, “Confesso que Vivi”, do genial poeta e romancista chileno, Pablo Neruda, página após página, sob meus olhos nas madrugadas regadas a solidão, ao meu lado o fiel escudeiro, que não é Sancho Pança, mas sim, o tinto seco português.
Momentos e fragrâncias grudadas como em um filme, vejo seu corpo nu, as mãos e carinhos inebriantes, um esmalte discreto manchado pela tinta do mimeógrafo rodando textos clandestinos contra a genocida Ditadura Militar.
Agarradinhos sobre a minúscula ainda sinto brotar uma essência que perfumista algum, inclusive o criador do “Chanel nº 5”, Ernest Beaux conseguiu descobrir e sequer ousou imitar.
Fecho as páginas e humildemente peço licença ao gênio e Prêmio Nobel, murmuro ante a última gota do tinto que esvai deixando um sabor amargo de saudade.
Confesso que vivi.
* Agente cultural