“Minha história” é a música abaixo ao lado, e foi composta pelo compositor popular maranhense João do Vale. Esta música narra a história de exclusão que milhões de nordestinos que viviam e vivem, sem acesso a educação, a saúde e as condições básicas para a sobrevivência.
É a história de João do Vale, que não pôde estudar, porque tinha que trabalhar para ajudar a mãe a sobreviver. Viu muitos colegas se tornarem doutores, mas viu também muitos numa condição ainda pior que a dele, a da indigência total. Ele ainda tinha talento para compor, e mesmo sendo expulso da sua terra natal, pela seca e pela fome, foi viver na cidade grande do Rio de Janeiro, fazendo massa e carregando tijolos, como ajudante de pedreiro para sobreviver. Entre uma massa e outra, João fazia suas composições e as apresentava a seus colegas de rádio, como Luiz Vieira, que se tornou seu parceiro em várias composições e o ajudou no desenvolvimento da sua trajetória musical.
Conta Luiz Vieira, que um dia estava na rádio e João chegou todo sujo de massa, de chinelo e roupa também suja e disse: Luiz, tenho uma música para você. Quer terminá-la? A música era “Asa do vento”, que se tornou grande sucesso na voz de Luiz Vieira, de Dolores Duran e de Caetano Veloso, e tem um refrão bem conhecido: “Rosa amarela quando murcha perde o cheiro, o amor é bandoleiro, pode inté custar dinheiro, é fulô que não tem cheiro e todo mundo quer cheirar. Todo mundo quer cheirar, olará, viu? Todo mundo quer cheirar. Todo mundo quer cheirar, olará, tá? Todo mundo quer cheirar”.
João do Vale, Zé Keti, Nara Leão e, posteriormente, substituindo Nara, Maria Betânia, protagonizaram em 1964, um dos maiores e mais importantes shows de resistência à ditadura militar, chamado “Opinião”. Em 11 de dezembro de 1964 estreava o espetáculo “Show Opinião”, escrito de forma coletiva por vários autores e assinado por Armando Costa, Paulo Pontes e Vianinha, e dirigido por Augusto Boal. O “Show Opinião” marcaria a história cultural brasileira e dos artistas que procuravam alguma forma de se opor ao golpe militar. No espetáculo há três protagonistas, cuja biografia serve de base para o enredo da peça/musical. A música é o que une os protagonistas, e é tomada como uma forma de luta e resistência.
São três personagens com histórias distintas, com o fio condutor da música como luta social. João do Vale representa o migrante nordestino, que chega ao Rio como a capital da indústria cultural, para tentar fazer sua música. Zé Keti é o trabalhador carioca, dos morros do Rio; Nara Leão é a garota de classe média que decide aderir à música e à luta popular, como de fato fez, tendo sido muito criticada pelo seu abandono do posto de expoente da bossa-nova, que ela rejeitou como um período de alienação. Posteriormente, Maria Bethânia substituiu Nara Leão no “Opinião” por motivos de saúde.
O “Show Opinião” é fruto direto das experiências do teatro de rua do CPC. É uma experiência de AgitProp (Agitação e Propaganda, uma forma teatral que surgiu na Rússia pós-revolucionária e está vinculada a um teatro vinculado aos movimentos de luta dos trabalhadores e explorados). Sua forma não é a de um teatro, mas a de uma narrativa feita pelos atores-cantores, que utilizam sua música para contar uma história da música no país e a sua relação com a indústria cultural.
Cada um deles narra suas dificuldades para poder exercer a sua arte: o preconceito de classe, o machismo, o estereótipo do músico, a imposição do mercado cultural americano. Longe de reivindicar uma música “100% nacional”, caindo num chauvinismo que assolou uma parte dos artistas brasileiros, o Opinião reconhece uma grande qualidade na música americana e de outros países, mas afirma que o que há de bom nessa não chega ao Brasil (assim como o que há de bom aqui não consegue furar o cerco da indústria).
João do Vale foi um artista popular talentoso, engajado e muito sensível às causas sociais. Compôs diversas e lindas músicas, como “Carcará”, que se eternizou na voz forte de Maria Betânia, “Coroné Antonio Bento”, marcante na voz de Tim Maia e “A voz do povo”, na sensível interpretação de Paulinho da Viola.
Salve João do Vale, grande compositor e artista popular brasileiro!