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‘Memórias do Café Nice’

“Memórias do Café Nice”. Este é o nome de uma música com­posta por Milton Carlos e sua irmã Isolda, autora de um dos maiores sucessos de Roberto Carlos, a canção “Outra Vez”.

Quando ouvi Milton Carlos cantando imaginei ser uma mulher, pois sua voz fe­minina me levava a pensar assim. Ele conseguiu gravar numa época em que a voz era fundamental. Tenho um CD dele que guardo com muito carinho, pois tenho por ele grande admiração, foi embora muito cedo também, aos 26 anos.

Acho também feminina a voz do sertanejo Xororó, que faz dupla com o irmão Chitãozinho, além de Zezé di Camargo, Pablo e outros que, além de terem a voz super agudas, cantam em um tom que poucos alcançam. Milton Carlos, quando compôs “Memórias do Café Nice” foi de uma inspiração divina, pois ele viajou na maionese para uma época de grandes boêmios, grandes poetas, compositores e cantores. O Café Nice ficava no Centro antigo do Rio de Janeiro, na avenida Rio Branco nº 174.

Tinha toldos que protegiam seus clientes e também ficava per­tinho do Theatro Municipal. Foi inaugurado em 1928 e, segundo o sambista Ismael Silva, tinha cinco portas, três ambientes, cadeiras de vime e paletó e gravata eram trajes obrigatórios. Costumava-se dizer que as paredes do café tinham ouvidos, era ali que os com­positores levavam suas músicas para mostrar a cantores que iam lá pelo mesmo motivo: descobrir possíveis sucessos. Como naquele tempo não existia gravador, o compositor mostrava suas obras escondido dos demais para evitar roubo de melodias – as paredes a tudo ouviam (heheheheh).

Francisco Alves, o Rei da Voz, era assíduo frequentador do pedaço. Mário Lago também. Era um tempo de chiqueza, até que compositores mais populares desceram dos morros para mostrar que também sabiam fazer música de qualidade. Daí surgiram Carto­la, Nelson Cavaquinho e outros.

Francisco Alves às vezes procurava por Cartola, mas nem sempre o sambista aparecia, então o Rei da voz se mandava para o Morro da Mangueira. Imagine só, naquele tempo para encontrar alguém só indo na captura. O morro ficava no maior alvoroço quando o cantor parava seu reluzente Cadilac ao pé das escadarias e subia com seu terno de linho 120 e chapéu de pêlo de coelho até onde morava o autor de “As rosas não falam”. Tomava o café de Dona Zica e longos papos aconteciam.

O também imortal maestro Heitor Villa-Lobos freqüentava a casa de Cartola. Adorava a feijoada da Dona Zica, mas antes bebericava algumas caipirinhas feitas por ela, ouvia as composições de Cartola e depois ria muito. Feliz da vida, comentava: “Cartola, tá tudo errado, mas tá tão bonito!” Fico imaginando a cabeça do maestro, sua formação de compositor clássico, 0erudito e tudo mais, conhecido mundo afora, sentado num banquinho humilde, ouvindo o violão simples mas bem tocado por Cartola. Momentos como estes só acontecem com a intermediação divina.

Milton Carlos, ao compor “Memórias do Café Nice”, foi de uma felicidade sem tamanho, pois ele descreve com muita sutileza a frequência do ambiente do começo ao fim. Senão vejamos: “Ai que saudades me dá, do bate papo do disse me disse, lá do Café Nice, ai que saudades me dá, de Cadilac chegava Chico Alves, logo no samba queria entrar, Ismael só na de pão com manteiga, até esquecia a nega pra poder ficar, e o samba varava a madrugada e o Café Nice era um pedaço do céu, num canto batucava João de Barro, Lamartine, Pixin­guinha, Almirante e Noel…Ai que saudades me dá… Caymmi sem barriga e sem madeixas, mostrava a Carmem o que é que a baiana tem, Ari Barroso no piano reclamava, que Donga fez um samba que não é de ninguém, e o samba varava a madrugada e Café Nice amanhecia em festa, Cartola afinava a viola, que pena que agora só saudade é que resta.”

Milton Carlos, tu és grande.

Sexta conto mais.

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