André Luiz da Silva *
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O falecimento de Marina Colasanti foi profundamente sentido no meio literário. A consagrada escritora ítalo-brasileira, autora de mais de 70 obras publicadas, destacou-se tanto na literatura infantil quanto na adulta, com igual maestria e sensibilidade.
Sempre que uma personalidade de grande relevância falece, há uma mobilização natural para revisitar sua obra. Nesse contexto, reencontrei a crônica “Eu Sei, Mas Não Devia” (1997), em que a autora expõe, com notável perspicácia, diversas situações às quais nos acostumamos no cotidiano, embora não devêssemos.
O texto inicia abordando a realidade de viver em apartamentos com vista limitada, prossegue mencionando cortinas que impedem a entrada do sol, a rotina acelerada das manhãs, os desafios do transporte público e a pressa nas refeições. Marina Colasanti alerta para um fenômeno recorrente: a exaustão diária que nos faz dormir cedo, sem que tenhamos, de fato, vivido o dia.
A crônica também reflete sobre questões mais amplas e estruturais, como a aceitação passiva das guerras, das mortes, da exclusão social, do consumismo desenfreado e da luta contínua para conquistar direitos fundamentais. A escritora denuncia a degradação ambiental, apontando a contaminação das águas, a morte dos rios, o desaparecimento dos pássaros e o impacto da alimentação industrializada na saúde e no meio ambiente. Ao final, conclui que nos acostumamos com tudo isso para “poupar a vida”, mas, paradoxalmente, acabamos desperdiçando-a da pior forma possível.
A força e a atualidade do texto são impressionantes. Quem desconhece a trajetória de Marina Colasanti poderia facilmente supor que sua crônica foi escrita nos dias atuais, quando assistimos a centenas de brasileiros e estrangeiros sendo deportados dos Estados Unidos, tratados como criminosos. A política internacional é abalada por decisões intempestivas de líderes mundiais, enquanto, no Oriente Médio, palestinos continuam a perder suas vidas, apesar dos acordos de cessar-fogo e das negociações para a troca de reféns e prisioneiros com Israel.
O mês de janeiro, marcado por tragédias e incertezas, trouxe consigo notícias de acidentes rodoviários, crimes urbanos, enchentes e desastres naturais agravados pela crise climática. A inflação ressurge como um problema preocupante, enquanto as lideranças políticas parecem mais voltadas às eleições de 2026 do que às necessidades urgentes da população. No cenário religioso brasileiro, emergem relatos de cisões internas e disputas por poder e recursos financeiros. Para agravar 125 grupos neonazistas que fazem letras para atacar negros, a comunidade LGBTQIAP+ e judeus foram identificados no país.
Muitos leitores tiveram a oportunidade de conhecer a obra e a própria Marina Colasanti, que esteve presente nas edições de 2017 e 2018 da Feira Internacional do Livro de Ribeirão Preto. Durante o evento, a escritora dialogou com leitores de todas as idades, especialmente com os mais de mil alunos envolvidos no projeto “Combinando Palavras”, que trabalharam seus textos em sala de aula. Que essas sementes lançadas possam florescer e frutificar, inspirando novas gerações a refletirem e transformarem o mundo ao seu redor.
Além de nos destruirmos, estamos destruindo o próximo e o planeta. Se eu sei, se você sabe, por que chegamos a esse ponto? Como nos tornamos tão passivos diante das adversidades e tão permissivos diante das injustiças? Até quando permaneceremos inertes? Talvez a maior homenagem que possamos prestar a Marina Colasanti seja justamente essa: não nos acostumarmos. Que possamos questionar, resistir e agir para construir uma realidade mais justa, humana e consciente.
* Servidor municipal, advogado, escritor e radialista