Por Luiz Zanin Oricchio
Neste momento de luta antirracista, o lançamento de Doutor Gama, de Jeferson De, tem especial importância. Afinal, o filme associa-se ao resgate da figura ímpar de Luiz Gama, que nasceu livre, foi vendido como escravo, conseguiu libertar-se, estudou Direito por conta própria, defendeu centenas de negros nos tribunais e tornou-se figura de proa do abolicionismo.
Jeferson De retrata a história do personagem em traços curtos e bem definidos. Na infância, filho de uma mulher negra e um português. Nascido livre, foi vendido como escravo, aos dez anos, pelo próprio pai, para pagar dívidas de jogo. Depois vemos o jovem, que consegue se alfabetizar apenas aos 17 anos, conseguindo a alforria, tornando-se um autodidata, escritor e depois jurista.
Por fim, numa passagem crucial, síntese de toda a ação de Gama, ao defender no tribunal um homem negro acusado de haver matado o patrão. Três atores interpretam o personagem nessas fases: Pedro Guilherme (infância), Angelo Fernandes (juventude) e César Mello (maturidade). Gama nasceu em 1830, em Salvador, e morreu em São Paulo, em 1882, provavelmente por complicações de diabetes. Não viveu, portanto, para assistir ao ato final da escravidão, em 1888. Mas contribuiu decisivamente para que ele acontecesse.
Esse talvez seja o cerne do recorte proposto por Jeferson De – a Abolição não seria fruto de um ato isolado de generosidade vindo de uma princesa branca, mas resultado da luta prolongada de muita gente, Luiz Gama entre elas.
Desse modo, Doutor Gama não ignora os sofrimentos e a ignomínia da escravidão, mas não dá a esses aspectos o mesmo relevo que outros filmes. A luta se sobrepõe à dor. Não a nega, mas desloca o ponto de vista e coloca a ação em primeiro plano. É uma obra propositiva, exemplar nesse sentido. Ajuda a divulgar um personagem fundamental para pessoas que talvez o conheçam de maneira apenas aproximativa. E que talvez se inspirem em seu exemplo.
Aliás, o momento atual tornou-se ideal para o resgate de uma figura como Luiz Gama. Com a onda antirracista do Black Lives Matter (Vidas negras importam), o legado de Gama começa a vir à tona. Ele, que em sua época foi impedido de formar-se, agora é Doutor Honoris Causa pela Universidade de São Paulo. Suas obras completas, em dez volumes, serão publicadas pela Editora Hedra. Não se trata apenas de escritos jurídicos, mas artigos em jornais, poemas, sátiras, correspondência, num total de mais de cinco mil páginas, que testemunham um intelectual ativo e influente em sua época. É de se supor que essa publicação seja acompanhada de muito debate e repercussão pública, o bastante para fazer de Luiz Gama um personagem mais complexo, abrangente e com posição de destaque na história brasileira.
Nesse sentido, o trabalho de Jeferson De cumpre importante missão ao optar por um registro simples, que torna a figura do abolicionista bastante fácil de ser assimilada, inclusive por públicos desacostumados a malabarismos cinematográficos. É um filme “papo reto”, que vai direto ao ponto, sem enrolações.
Por outro lado, em sua simplicidade, é bastante consistente como obra de época. Não cedendo à facilidade da mitologia em torno de Gama, trabalhou com consultoria histórica e procura fazer dele uma pessoa humana, com dúvidas e dificuldades a vencer pela frente. Enfrenta, também, os desafios de ser uma obra de época, ambientada em parte numa São Paulo do século 19, da qual restam poucos vestígios. A solução foi filmar essas partes em Paraty, a cidade colonial do litoral fluminense, bastante preservada, ao contrário da capital paulista.
Por fim, a direção segura e sem afetação mostra um cineasta em plena maturidade, sabendo o que deseja, como dar seu recado e a quem se dirige. É um filme voltado ao público, sem manobras para encantar a críticos ou a curadores de festivais de cinema. Jeferson De é autor de ótimos títulos, como Bróder (2010) e M8: Quando a Morte Socorre a Vida (2019). Ao retratar a figura grandiosa de Luiz Gama, nos relembra que a luta antirracista pertence a todos os que ainda sonham, apesar de tudo, em fazer do Brasil um país decente.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.