Por Dirceu Alves Jr., especial para o Estadão
O Rio de Janeiro do começo dos anos de 1980 respirava mais aliviado diante da iminência do fim da ditadura militar. Uma nova geração de intérpretes e autores, todos na casa dos 20 anos e já cansada de um teatro convencional e preso ao engajamento político, davas as caras.
Era o cenário ideal para ganhar plateias um subgênero da comédia, próximo da linguagem de cabaré e rotulado de besteirol, que emprestava um tom crítico a histórias curtas baseadas no cotidiano. O ator, dramaturgo e diretor carioca Felipe Pinheiro (1960-1993) despontou como um dos nomes dessa vertente e, agora, para conhecer melhor parte de sua obra sai O Demitido (e-galáxia, 494 páginas, R$ 40,00 (e-book) e R$ 70,00 (livro físico, sob encomenda). A coletânea, organizada pela irmã do artista, a psicanalista Teresa Pinheiro, reúne peças de teatro, esquetes e roteiros de televisão produzidos em pouco mais de uma década, entre 1982 e 1993.
Felipe Pinheiro sofreu uma parada cardíaca e morreu aos 33 anos. Um baque para todos que o cercavam. Tinha um corpo magro e peludo, equilibrava uma cabeça grande, coroada por farta cabeleira, boca larga e nariz pequeno, como descreve a atriz e amiga Fernanda Torres no prefácio. Estava no ar na novela Olho no Olho, da Rede Globo, depois de se destacar em Bebê a Bordo e Vamp, e ainda não tinha concluído O Judeu, filme de Jom Tob Azulay, em que vivia o protagonista, o poeta Antônio José da Silva. “Meu irmão foi muito infeliz durante as filmagens devido às inúmeras interrupções e problemas de financiamento”, conta Teresa. Seu humor transgressor e refinado chamou atenção em uma longa e bem-sucedida parceria com Pedro Cardoso. Bar, Doce Bar, de 1982, foi a primeira montagem da dupla que, na sequência, também escreveu, dirigiu e interpretou os múltiplos personagens de A Porta (1983), C de Canastra (1986) e Nada (1988). “Felipe apresentou uma dramaturgia anárquica em uma época que a regra era fazer um teatro politizado”, afirma Cardoso. “Criamos juntos mais de cem esquetes e garanto que, pelo menos, vinte deles têm uma transcendência incomum.”
O Demitido reúne apenas a dramaturgia individual de Pinheiro e deixa de fora a significativa obra com Cardoso. “Trabalhávamos com o improviso, então, na maioria das vezes, nem registramos os textos e confesso que não teria cabeça para recuperar esse material”, explica o ator. “Sofro até hoje com a morte do Felipe ”
Teresa, por sua vez, demorou para enfrentar o luto, mas percebeu a importância de abrir suas gavetas para organizar os calhamaços de folhas datilografadas guardados há mais de 25 anos. “O humor do Felipe era feito para chatear a classe média, para criticar o desmonte cultural de pessoas que poderiam ter acesso a tudo e não aproveitam nada, um olhar que permanece atual”, analisa a irmã do artista.
Teresa não está enganada. Parte do material reunido em O Demitido resistiu ao tempo. Um casal disposto a ostentar em um lugar sofisticado são os personagens do esquete Sábado no Restaurante. Eles juntaram os trocados para comemorar o aniversário de casamento e, no entanto, parecem invisíveis aos garçons que nunca os atendem. Texto do título do livro, O Demitido também flerta com a crítica social ao mostrar um sujeito que acredita ter perdido o emprego e joga as verdades na cara do chefe. Em Mamãe, Eu Tô Pregado, um Jesus Cristo exausto chora as mágoas diante de Maria porque não aguenta tantas responsabilidades, ideia que poderia ser facilmente associada hoje aos programas do Porta dos Fundos. Mesmo inacabada, a peça Reconstruindo a Vida aos Doze desperta interesse por abordar de forma impiedosa o universo dos artistas mirins e os traumas do contato precoce com a fama. “O Felipe se inspirou na Simony, cantora do grupo Balão Mágico, e, antes de escrever a peça, entrevistou as atrizes Gloria Pires e Isabela Garcia, que também começaram a trabalhar cedo”, lembra Teresa.
Em meio ao pacote, o mais perecível é Detalhes Tão Pequenos de Nós Dois. A peça fez sucesso com os atores Pedro Paulo Rangel e Tânia Alves e rendeu um Prêmio Mambembe póstumo ao autor. Quase três décadas depois, porém, é flagrante como Pinheiro se apoiou em estereótipos para narrar o romance entre um neurótico restaurador de obras de arte e a empregada doméstica. Também um pouco deslocada do conjunto é Will, peça criada com base em fragmentos da obra de William Shakespeare, que recupera Romeu e Julieta, Hamlet, Macbeth e Ricardo III, entre outros, de forma naturalizada e coloquial. Para o diretor Amir Haddad, espécie de supervisor artístico da parceria dele com Pedro Cardoso, o dramaturgo não teve tempo de desenvolver uma obra mais profunda, como os contemporâneos Mauro Rasi e Miguel Falabella. “Felipe Pinheiro foi o mais importante do seu tempo porque teve a capacidade de apresentar uma linguagem crítica e fora da rigidez ideológica sem ficar alienado”, afirma Haddad. “O absurdo foi ter morrido tão jovem.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.