Miguel Torga foi um escritor que, menino e humilde, trabalhando para familiares abastados, conheceu a prepotência humana: no casarão dos parentes, foi criado, jardineiro, copeiro, entregador de bilhetes, entre outros, funções estas que toleráveis seriam não fossem a ironia, o desprezo e a maledicência com que lhe eram solicitadas. O seminário oferecia-lhe outra realidade, tolhida de liberdade, é certo, mas com amplas possibilidades de leitura e conhecimento. Passam-se os anos e, já conhecedor dos mistérios que alimentavam as religiões, o não querer ser padre o traz ao Brasil, à propriedade de um tio cafeicultor, muito diferente dos primeiros, que lhe colocaria diante do companheirismo e solidariedade verdadeiros: o tio, observando por alguns anos sua dedicação sincera, e trabalho dedicado, oferece-lhe o pagamento dos estudos, auxílio que leva Torga à Minas Gerais e, posteriormente, à Portugal.
Médico, clinicando nas regiões lusas campestres, seu contato com a natureza, entremeado pelas experiências de vida, levam-no a priorizar a valorização do homem em detrimento a Deus, alegando que o homem é resiliente diante das adversidades, ao passo que Deus, por ser onipresente e sobrenatural, não é subjugado pelos desígnios de ninguém e, tampouco, sofre a desilusão, a humilhação e a privação da liberdade de ser que atormentam os homens. Reflexões estas que podem ser contempladas em sua produção literária, em especial, em “Bichos”, coletânea de contos que traz a cosmovisão do autor, segundo a qual, o homem está numa sociedade civilizada, porém corrompida por valores de seu tempo atual, os quais o distanciam, de modo exagerado, de sua origem. Para voltar a ser bom, portanto, haveria a necessidade desse mesmo homem voltar às origens, ao contato com o outro e a natureza, para despertar e voltar a harmonizar sua sensibilidade com a razão.
Neste contexto, temos, em “Bichos”, Vicente, o corvo contraditório. Rebelde, diante da perplexidade de todos os demais bichos, luta com Deus pela sua autonomia de criatura diante do criador. O enredo? A arca de Noé. A angústia de Vicente por estar preso. Sua fuga. O companheirismo de todos os outros animais a torcerem por sua sobrevivência na escuridão fria e tempestuosa do Dilúvio. Até Deus questionar a Noé, nos seiscentos anos de obediência deste, o que era feito de Vicente. Um Noé angustiado, mas homem e humano, é quem se reporta a Deus, solicitando a compreensão do Senhor para com a ave. “Noé…! Noé!…”. A perplexidade de Deus. Se castigasse Vicente pela rebeldia, toda a Bondade teria sido em vão. Se o absolvesse, no que creriam as criaturas da terra?
“Três vezes ondas altas lamberam as garras do corvo… Mas três vezes recuaram… A morte temendo a morte… Fechavam-se, melancolicamente, as comportas do céu”. E Deus é vencido diante “daquela vontade inabalável de ser livre”.