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Lembranças são como o vento que o tempo dissipa

Em um final de tarde destes distantes, que demoram a escurecer, devagar se despedindo do azul do céu, até ser substituído pelo forte laranja do Sol crepuscular, aguardando as estrelas salpicando o céu nas noites das Gerais.

Estava eu lá em nossa casa absorto em meus pensamentos, suspi­rando minhas descobertas da adolescência, pensando e preparando nossas serenatas aos sábados, quando minha mãe, com seus passos sua­ves tal qual as bailarinas nos palcos adentrou o silêncio da sala, olhando daquele jeito só seu, terno, carinhoso, porém circunspecto, quando tinha algo a dizer bastante sério, importante e incontestável.

Pela primeira vez ouvi que a gente tinha de sair de lá para se dar bem, ser alguém e vencer na vida.

Minas ficando para trás perdida no tempo e na poeira que subia pelo sacolejar da Jardineira.

Um passado tão presente desaparecendo lentamente ficando cada minuto menor.

Ao longe, pela janela empoeirada, vislumbrei as casas, o riacho, o gado, o verde das plantações e o homem de chapéu e cabeça baixa tudo desaparecendo ao longe, ficando pequeninho, meu coração também foi sumindo apertado, quase alçando e saltando pela garganta seca.

Sem querer, adormeci, sonhei buzinas, veículos, escritórios, edifí­cios, relógios, gravatas, os homens e seus ternos. “Conheci os homens e os seus velórios”, meu irmão menino assustado olhava para os lados e cravava as unhas nas costas das mãos.

Nos meus devaneios me indagava o que deve significar “vencer na vida”, desprezando o que é bom, será ganhar dinheiro, ter uma casa moderna, ou simplesmente um diploma para pendurar na parede e olhar quando não se tem mais nada a fazer ou a dizer.

Cerrava os olhos e via as tardes, as meninas, a praça, o coreto e os sinos tocando alertando para o tempo, “Relógio no chão da praça batendo avisando a hora”.

Cada badalada um sinal, a noite que não passa, tosse, arrepios, dores e a mão de minha mãe na testa. Está febrinho meu filho? Coitadinho!

A caneca de barro com chá de flor de laranjeira, lascas de canela, mel e alho tudo fervendo e um comprimido da eterna Aspirina.

Suores noturnos, tremores, pesadelos, aflições, tormentos e a ale­gria de acordar curado, ouvindo o trinado do meu canário Pixinguinha em seus gorjeios melodiosos ao amanhecer.

A primeira calça comprida, os bailes, o cigarro Continental Sem Filtro escondido na mão fechada em concha, a paixão pela menina mais linda da classe, neta do Coronel, nunca fomos convidados aos seus ani­versários no Palacete da Matriz, era preciso um sapato bom. O futebol de rua, bola de meia e os lambaris pegos na peneira. Minha mãe, uma das grandes Marias de Minas. “Uma força que nos alerta”.

Hoje, finados, sorvendo um tinto seco, pensando em nossos mortos, em um gesto mecânico despretensioso, liguei o televisor, zapeando canais. Em um deles passava um especial antigo com Milton Nascimento e o Clube da Esquina, tocando sentados em uma mesa de bar, em Santa Tereza. A mesa bem no limiar da porta de costas para a igreja e para a montanha quieta deitada de bruços. “Vejo uma igreja um sinal de glória”, “subia na montanha, não como anda um corpo, mas um sentimento”.

Na hora fui invadido pelas imagens do meu tempo, nossa infância e mocidade. “Foi nos bailes da vida”.
As meninas sentadas no muro do Sacré-Coeur. “Eu vou falar no seu ouvido, coisas que vão fazer você tremer dentro do vestido”.

Minha mãe, meus irmãos, meus amigos, minhas Minas, para sem­pre perdidos se dissipando nas lembranças.

Bebi mais um gole do vinho e abri a estante, selecionei um Bandeira “Estrela da Vida Inteira”, busquei uma página já amarelada e esquecida pelo tempo e lá estava escrito pelo brilho eterno do poeta Manuel Car­neiro de Souza Bandeira Filho:

“A vida como uma porção de coisas que eu não entendia bem. Ter­ras que não sabia onde ficavam. Recife… Rua da União… A casa do meu avô… Nunca pensei que ela acabasse! Tudo lá parecia impregnado de eternidade. Recife… Meu avô morto. Recife morto. Recife bom, Recife brasileiro como a casa do meu avô”.

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