O advogado especialista em direito público, Luiz Sacarpino e sua esposa, a professora Renata, decidiram encampar uma batalha para garantir direitos de sua filha Maitê, de 3 anos de idade. A menina possui uma síndrome degenerativa que acomete principalmente as funções motoras, sendo absolutamente dependente de cuidados, e se desloca apenas com uma cadeira adaptada.
Foi graças a essa luta e a um anteprojeto de lei elaborado por eles, discutido pela sociedade e assumido pelos vereadores Gláucia Berenice (PSDB) e Luciano Mega (PDT), que Ribeirão Preto ganhou esta semana a Lei Maitê. O projeto foi aprovado por unanimidade pela Câmara de Vereadores, no final do ano passado e sancionado no último dia 22 de janeiro pelo prefeito Duarte Nogueira Júnior (PSDB).
A Lei garante reserva e preferência de espaços e assentos para pessoas com deficiência (PCDs) e mobilidade reduzida nos eventos da cidade, sendo de 10% para eventos com até mil pessoas e até 4% para os com público superior a 5 mil pessoas.
Tribuna Ribeirão – O senhor é autor do anteprojeto que resultou na lei aprovada pela Câmara de Vereadores que garante preferência de espaços e assentos para pessoas com deficiência. Como nasceu esta proposta?
Luiz Scarpino – Eu e minha esposa, Renata, tivemos a ideia de buscar justiça contra um episódio triste que sofremos. Temos três filhos, sendo que a Maitê, de 3 anos, possuí uma síndrome degenerativa que acomete principalmente as funções motoras, sendo absolutamente dependente de cuidados, e se desloca apenas com uma cadeira adaptada. Entretanto, tentamos seguir uma vida absolutamente corriqueira e a incluímos em nossa rotina normal.
Em julho de 2019 estávamos em um evento gastronômico em um shopping e em razão da aglomeração de pessoas e da falta de assentos demarcadas fomos atrás da organização. Primeiro para saber se havia assentos para pessoas com deficiência. Em segundo, se algo poderia ser feito para nos acomodar ou pelo menos a Maitê e um acompanhante. Recebemos uma resposta rude e insolente da responsável que, além de não solucionar a ilegalidade, fez questão de desprezar a presença de uma criança com deficiência no seu evento.
Saímos desolados do local, mas com o sentimento de que aquilo não ficaria impune. Após reflexões e pesquisa, no dia seguinte, nos veio a ideia de criar um projeto que punisse as empresas que não garantissem a acessibilidade e a inclusão de pessoas com deficiência e também mobilidade reduzida em eventos. Com a ajuda de amigos e especialistas no assunto, apresentamos a proposta às comissões temáticas da Câmara de Vereadores que mais tinham pertinência: a da Pessoa com Deficiência e a dos Idosos/Crianças.
O projeto sofreu alteração e o percentual de espaços foi reduzido. A que o senhor atribui esta redução?
Luiz Scarpino – A Lei Maitê foi proposta e apresentada com o objetivo de ser amadurecida em sua tramitação – que durou aproximadamente seis meses. Creio que atingimos o objetivo. O anteprojeto foi redigido no final de julho e já no início de agosto, com a volta do recesso legislativo, começou a tramitar na Câmara.
Logo, seria natural sofrer ajustes. Já há uma previsão federal para eventos realizados em teatros, cinemas, estádios, que é de 2% para pessoas com deficiência e mais 2% para pessoas com mobilidade reduzida (que incluem causas permanentes ou transitórias, incluindo idosos, gestantes, lactantes, pessoa com criança de colo e obesos). Entretanto, em eventos ao ar livre não existia legislação, por isso a Lei Maitê criou um novo percentual (inicialmente em 20%) sendo que o consenso ao qual os vereadores chegaram foi de estabelecer 10% para eventos com até 1.000 pessoas e reduzido até 4% àqueles com público superior a 5 mil pessoas. Mesmo que as vagas sejam totalmente preenchidas, há previsão do direito de preferência, desde a entrada do estabelecimento até sua efetiva acomodação, além das vagas reservadas. Os estabelecimentos ficam responsáveis pela reserva e caso não haja demanda, podem pontualmente ocupar tais espaços com outras pessoas, principalmente em eventos vendidos com antecedência. Acreditamos que houve um grande passo, mas ainda não estamos satisfeitos: é preciso que haja maior conscientização de todos: população (com ou sem deficiência) e principalmente o empresariado, que deve enxergar que existem consumidores “atípicos” que querem ser bem atendidos, mas precisam pertencer e participar socialmente.
Foi preciso muita mobilização para aprovar este projeto de lei?
Luiz Scarpino – Uma proposta ou uma lei que não encontra respaldo no seio social está fadada a ser considerada ilegítima. Desde o primeiro momento, a proposta da Lei Maitê contou com o apoio de especialistas e foi ganhando corpo à medida que foi sendo debatida. Primeiro no Fórum Permanente de Discussão Intervenção na Política de Atenção à Pessoa com Deficiência que engloba Defensoria Pública e entidades sociais, além de representantes do Poder. Depois debatemos o projeto em audiência pública realizada na Câmara, posteriormente, no Conselho Municipal de Direitos da Pessoa com Deficiência e, por fim, uma reunião com empresários, além das conversas que travamos particularmente com inúmeros vereadores.
Enfim, a proposta foi escrutinada pelos principais atores da sociedade e recebeu o respaldo da Câmara, que a aprovou por unanimidade, com a sanção sem vetos pelo prefeito Duarte Nogueira. Até por isso, uma tentativa intempestiva e desleal de esvaziar a proposta da Lei Maitê acabou sendo derrotada pela maioria expressiva dos vereadores.
Que avaliação o senhor faz da legislação brasileira no que diz resp\eito aos direitos das pessoas com deficiência?
Luiz Scarpino – A legislação brasileira é muito rica e se plenamente cumprida garantirá um tratamento digno a todos, desde o acesso e permanência a estabelecimentos empresariais, até a inserção no mercado de trabalho, com a política de cotas que as grandes empresas são obrigadas a atender. Viver em sociedade implica em garantir plena participação, coibir práticas discriminatórias, conferir dignidade e autonomia, enfim, ao respaldo que todos sejam efetivamente tidos como “normais” e não segregados entre típicos versus atípicos. Por isso não mais se trata de “portadores de deficiência” ou “pessoas com necessidades especiais”, mas sim pessoas com deficiência, com ênfase no lado humano, na pessoa e não na razão que a incapacita ou a limita. O que é preciso, voltando ao questionamento inicial, é que sejamos mais vigilantes e atentos fiscais contra quaisquer tipos de posturas que não garantam a plena inclusão e participação.
No caso específico de Ribeirão Preto qual sua avaliação dos projetos e ações do Poder Público neste setor?
Luiz Scarpino – A discussão de políticas públicas ocorre de forma mais intensa nos últimos vinte anos. Em Ribeirão Preto, temos um grave e histórico problema de acessibilidade nas calçadas, por exemplo, cuja responsabilidade partilha o Poder Público e a sociedade. Penso que o Executivo deve ser muito vigilante quanto a aprovação de construções, concessão de alvarás para que as leis não sejam perpetuamente descumpridas. Como lado positivo, destacamos os princípios de acessibilidade no Plano Diretor Municipal (de 2018) e da atribuição de poder deliberativo – e não só consultivo – ao Conselho Municipal de Direito das Pessoas com Deficiência. A tarefa é desafiadora, pois o Executivo deve garantir mais ações inclusivas – na área de educação, por exemplo – e aprimorar a fiscalização; já a sociedade civil deve ser vigilante e demandar inclusive judicialmente todo e qualquer desrespeito aos direitos das pessoas com deficiência.
O senhor tem uma inserção profissional e política que lhe permite ser ouvido quando um direito é desrespeitado. Como o cidadão de periferia pode cobrar seus direitos?
Luiz Scarpino – Qualquer pessoa pode acionar o Ministério Público para demandas de caráter coletivo, assim como a Defensoria Pública para atuar concretamente na defesa da população hipossuficiente economicamente. Temos ainda a atuação de organizações sociais e do próprio Conselho Municipal como canal para promover reclamações, denúncias e exigir o atendimento das leis. Exigir a aplicação das leis não deve ser um privilégio, mas a prerrogativa de qualquer cidadão.
Em sua opinião o Legislativo municipal tem trabalhado para garantir direito para as pessoas com deficiência?
Luiz Scarpino – Sim, me parece que há, de forma geral, sensibilidade dos parlamentares quando discutem o tema, cabendo aos cidadãos demandar mais e melhores políticas. Como crítica construtiva, aponto que a atuação parlamentar na fiscalização das regras existentes poderia ser aprimorada e intensificada. É preciso ter coragem e independência para atuar para as pessoas com deficiência e um senso maior de coletividade. Durante a discussão da Lei Maitê vi a tentativa de interferência de “vozes ocultas” que não tiveram a coragem de aparecer em audiência pública e que foram encampadas de última hora em emendas que queriam reduzir e esvaziar a Lei tornando a multa inócua e o percentual de assentos sem qualquer avanço. Felizmente, a pressão no dia da votação eclodiu a atuação de demagogos que posam de bons moços.
Que sugestão o senhor daria para o cidadão fiscalizar e cobrar o poder público?
Luiz Scarpino – Participar mais da atuação do Conselho Municipal de Direitos da Pessoa com Deficiência e buscar a educação dos direitos que as pessoas com deficiência possuem.