Você conhece alguém que a maior parte ou quase a totalidade da renda mensal vai para pagamentos de dívidas? Ou pior, a renda mensal não é suficiente? Ou ainda, pressionado pelas cobranças, entra em empréstimos em cima de empréstimos, que muitas vezes se tornam impagáveis? Pois bem, essa pessoa possivelmente se enquadra no que é conhecido como superendividada. Mas uma lei sancionada no início de julho, a Lei do Superendividamento, pode ser um caminho para quem quer sair dessa situação.
Basicamente superendividamento é quando o consumidor tem uma dívida em que a quantia é tida como impossível de ser paga.
Dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) demonstram que o número de famílias endividadas no Brasil alcançou o patamar de 69,7% em junho – maior percentual desde 2010.
Outros dados, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), mostram que atualmente 60 milhões de brasileiros estão endividados, sendo 30 milhões na categoria de superendividados. A crise provocada pela pandemia da covid-19 pode ter sido um ingrediente agravante nessa situação.
Estudos apresentados na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), indicam que grande parte dos consumidores superendividados estão “presos” em um ciclo de empréstimos com instituições financeiras. Nestes casos, o dinheiro nem chega à mão da pessoa, no ato do recebimento a instituição financeira “abocanha” a parte do salário ou do benefício/aposentadoria, no ato do recebimento.
Os estudos da UFRGS indicam ainda que a maior parte dos devedores, cerca de 80%, recebe no final, apenas 35% do salário para seus gastos mensais. A faixa salarial desse grupo é de três salários mínimos. Isso mostra que da renda mensal de R$ 3.300,00, sobram R$ 1.155,00 para as despesas mensais.
Entidades especialistas em economia apontam que o cenário deveria ser inverso, ou seja, 65% da renda deveriam ser usadas para as necessidades básicas de consumo familiar e 35% para pagamentos de dívidas.
Para tentar resolver esse problema a Lei do Superendividamento apresenta regras de prevenção aos consumidores e audiências de negociação entre credor e devedor. A lei também cria instrumentos para conter abusos na oferta de crédito a idosos e vulneráveis (ver mais sobre a Lei nesta página).
O advogado Gustavo Henrique Cabral Santana vê semelhanças na recuperação judicial e a Lei do Superendividamento. “Na recuperação judicial é possibilitado que a empresa com dificuldade financeira pague suas dívidas numa condição mais favorável para que possa continuar produzindo e gerando bens serviços e renda. No caso da lei de superendividamento ela tenta trazer o consumidor de volta ao consumo, ou seja, com a estruturação do consumidor para quitação de forma mais favorável de suas dívidas ele poderá voltar a consumir de forma saudável e consciente”, explica.
Santana avalia que outro ponto importante da lei é a obrigatoriedade das instituições financeiras em trazerem e informarem ao consumidor desde o custo efetivo das operações até taxas de juros e a impossibilidade de fornecimento de crédito ou de cartões sem a expressa concordância do consumidor. “Temos que lembrar que várias pessoas aposentadas no final da sua vida sofrem com créditos consignados que não fez com juros acima do mercado e tem que procurar judiciário muitas vezes para tentar cancelar crédito que não solicitou e que não contratou”, salienta.
“É um recomeço para quem está muito endividado na tentativa de recuperação financeira do devedor e para que este retome o consumo retome seu crédito e consiga utilizá-lo de forma saudável e consciente”, finaliza Santana.
Procon-SP lança Central do Superendividamento
O Procon-SP disponibilizará a partir de agosto uma central de negociações para agilizar e facilitar a vida do consumidor em situação de superendividamento.
A central será disponibilizada no site do Procon-SP. Por meio de um formulário, o consumidor deverá assumir-se na condição de superendividado – ou seja, impossibilitado de pagar as dívidas sem colocar em risco sua subsistência – indicar os seus credores, o valor total de sua dívida e apontar uma sugestão para pagamento desse valor no prazo de cinco anos.
Os credores serão convocados e será aprovado um plano de renegociação para pagamento dos valores. Caso os credores não concordem, a documentação será encaminhada para a Defensoria Pública, instituição com a qual o Procon-SP mantém convênio, que poderá ingressar judicialmente pedindo a aceitação do plano de renegociação, conforme previsão da lei.
“Sem dúvida essa central facilitará muito e dará acesso imediato aos superendividados para usufruir os direitos garantidos pela nova lei. O consumidor ganhará em agilidade e desburocratização e não terá necessidade de contratar um advogado para renegociar aquela dívida que já não podia pagar sem correr riscos com relação a sua própria subsistência”, afirma o diretor executivo do Procon-SP, Fernando Capez.
Conheça mais sobre a Lei do Superendividamento
A Lei 14.181/21, que ficou conhecida como a Lei do Superendividamento, atualiza o Código de Defesa do Consumidor, inclui regras de prevenção ao superendividamento dos consumidores e preve audiências de negociação entre credor e devedor. A lei, que entrou em vigor no dia 2 de julho, também cria instrumentos para conter abusos na oferta de crédito a idosos e vulneráveis.
O texto considera superendividamento a “impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial”.
O foco da lei são os consumidores que compram produtos ou contratam crédito em instituições financeiras, mas ficam impossibilitados de honrar as parcelas, por desemprego, doença ou outra razão.
A nova lei prevê as seguintes medidas:
– Torna direito básico do consumidor a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial;
– Torna nulas cláusulas contratuais de produtos ou serviços que limitem o acesso ao Poder Judiciário ou impeçam o restabelecimento integral dos direitos do consumidor e de seus meios de pagamento depois da quitação de juros de mora ou de acordo com os credores;
– Obriga bancos, financiadoras e empresas que vendem a prazo a informar ao consumidor o custo efetivo total, a taxa mensal efetiva de juros e os encargos por atraso, o total de prestações e o direito de antecipar o pagamento da dívida ou parcelamento sem novos encargos. As ofertas de empréstimo ou de venda a prazo deverão informar ainda a soma total a pagar, com e sem financiamento;
– Proíbe propagandas de empréstimos do tipo “sem consulta ao SPC” ou sem avaliação da situação financeira do consumidor;
– Proíbe o assédio ou a pressão sobre consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente em caso de idosos, analfabetos, doentes ou em estado de vulnerabilidade;
– Permite que o consumidor informe à administradora do cartão crédito, com dez dias de antecedência do vencimento da fatura, sobre parcela que está em disputa com o fornecedor. O valor não poderá ser cobrado enquanto não houver uma solução para a disputa.
Renegociação
Conforme a lei, o juiz poderá, a pedido de consumidor superendividado, iniciar processo de repactuação das dívidas com a presença de todos os credores. Na audiência, o consumidor poderá apresentar plano de pagamento com prazo máximo de cinco anos para quitação, preservado o “mínimo existencial”. Um regulamento da lei vai definir a quantia mínima da renda do devedor que não poderá ser usada para pagar as dívidas.
Se for fechado acordo com algum credor, o juiz validará o trato, que poderá ser exigido no cartório de protesto (eficácia de título executivo). Devem constar do plano, itens como suspensão de ações judiciais em andamento e data a partir da qual o nome sairá do cadastro negativo.
Não podem fazer parte dessa negociação as dívidas com garantia real (como um carro), os financiamentos imobiliários, os contratos de crédito rural e dívidas feitas sem a intenção de realizar o pagamento.
Vetos
A lei foi publicada na edição no Diário Oficial da União com cinco vetos. Um dos pontos vetados pelo presidente Jair Bolsonaro proibia propagandas de oferta de crédito ao consumidor do tipo “sem juros”, “sem acréscimo” ou “juros zero”. Neste tipo de operação, os juros costumam estar embutidos nas prestações.
Bolsonaro alegou, porém, que cabe ao mercado oferecer crédito nas modalidades, nos prazos e com os custos que entender adequados, com adaptação natural aos diversos tipos de tomadores. “A lei não deve operar para vedar a oferta do crédito em condições específicas, desde que haja regularidade em sua concessão”, afirmou na mensagem de veto.
Também foi vetado o trecho que limitava os níveis da margem consignável (o total que pode ser usado para pagar as parcelas), que seriam de 5% do salário líquido para pagar dívidas com cartão de crédito e 30% para outros empréstimos consignados. O governo alegou, entre outras razões, que a restrição acabaria por forçar o consumidor a assumir dívidas mais custosas. (Informações: Agência Câmara de Notícias).