Tribuna Ribeirão
Cultura

Kermode, gigante da crítica cultural, ganha reedição de ‘O sentido de um fim’

© Marcello Casal jr/Agência Brasil
Por Paulo Nogueira, especial para AE

As relações entre críticos e artistas nem sempre são afáveis. Claude Debussy surtou: “A crítica não passa de variações sobre o tema: ‘Você tem talento e eu não, e isso não pode continuar assim”. Talvez seja a vidraça reclamando do estilingue, mas há hermeneutas com a franqueza de um George Steiner: “Quem seria crítico, se pudesse ser autor?”.

Com um pé nas duas canoas, gosto tanto de ler ficção quanto seus melhores intérpretes. Ficando só com estrangeiros, no meu panteão pontificam: F. R. Leavis, Northrop Frye, Harold Bloom, Lionel Trilling, Louis Menand, Mark Greif, E. Auerbach, E. R. Curtius, Clive James e muitos outros. E agora sai no Brasil um clássico contemporâneo da crítica literária: O Sentido de um Fim, do britânico Frank Kermode, cuja edição original é de 1967, mas foi sucessivamente atualizada pelo autor.

Ironicamente, o título é o mesmo de um fabuloso romance de Julian Barnes, publicado muito depois e que ganhou o Booker Prize de 2011. Barnes comentou: “Bem, nunca tinha ouvido falar da obra de Kermode, e não há direitos autorais nos títulos. Kermode o possuiu durante quase meio século, e agora ele é meu”. Achado não é roubado.

O Sentido de um Fim é uma reflexão brilhante sobre o significado de final – na religião, no mito, na ciência, na filosofia e na ficção literária. O autor, que morreu em 2010, ocupou as mais prestigiosas cátedras (Harvard, Columbia, Cambridge) e foi feito cavaleiro pela rainha Elizabeth II. De erudição ímpar, preocupava-se em ser inteligível, exercendo o jornalismo literário nas revistas New Stateman e Spectator e sendo um dos fundadores da respeitadíssima London Review Of Books. Realçava a proeminência do deleite na leitura, e se comprazia em citar um humorista: “O meu trabalho é dar prazer às pessoas. O dos críticos é tentar me impedir”.

O foco de O Sentido de um Fim é o tempo – que, retilíneo ou cíclico, não para, e também muda literariamente. Kermode é aparentemente modesto: “Não se espera dos críticos, como se espera dos poetas, que nos ajudem a dar sentido à nossa vida: os críticos estão fadados apenas a tentar a façanha menor de dar sentido às maneiras como tentamos dar sentido à nossa vida”. Modéstia que contrasta com o desconstrucionismo (hoje demolido), que tira a autoridade do autor. Como observou Susan Sontag (melhor crítica do que ficcionista), “a interpretação é a vingança do intelecto sobre a arte”.

Kermode não poupa ferramentas: “Uma época, notou Einstein, são os instrumentos de sua investigação. A física estoica, a tipologia bíblica, a teoria quântica são todas diferentes, mas todas se valem de ficções. Em algumas situações, não conseguimos distinguir entre fato e nosso conhecimento do fato – as proposições podem até ser verdadeiras e falsas ao mesmo tempo. Mas, se existe ou não um princípio que se aplica a ondas e partículas, amor e justiça, prazer e análise, consciente e inconsciente, um dos grandes encantos dos romances é que eles têm de acabar. Mas, a menos que sejamos ingênuos, não pedimos que avancem rumo a esse fim precisamente como nos foi dado acreditar”. Por outras palavras, me engana que eu gosto.

A literatura joga com o tempo, e o ficcionista é um Deus não apenas onipotente como pré-big-bang, quando o tempo não existia. O autor todo-poderoso conhece o passado, o presente e o futuro da sua narrativa – coisa que nem os personagens nem o leitor sabem nem podem adivinhar, mas só conjecturar, de preferência equivocadamente. Hoje, os próprios cientistas consideram o tempo relativo, e não um absoluto. De qualquer forma, como notou o matemático Hermann Minkowski: “Ninguém jamais percebeu um lugar a não ser num tempo”.

Os gregos distinguiam três tipos de tempo. Cronos é o tempo físico, que pode ser medido, com um princípio e um fim (que Kermode chama de “o tique-taque”, o intervalo entre o tique do nascimento e o taque da morte). Kairós é um tempo metafísico em que algo especial acontece, o momento crítico, que cria um “antes” e um “depois”. Já Aíôn era o tempo sagrado e eterno, cíclico e imensurável – um termo usado na geologia e cosmologia para representar o período de um bilhão de anos, a escala de tempo na história da Terra.

Ora, a ficção literária engasta o Kairós no Cronos: um momento marcante que brota na rotina repetitiva e muda para sempre a vida do protagonista. Por isso, ficção é fricção, e toda narrativa encena uma crise, uma turbulência, uma instabilidade – não necessariamente adversa, que não pode ser ignorada. Por isso, os autores têm uma história para contar. Como diz Tolstoi na abertura de Anna Karenina: “Todas as famílias felizes são iguais, mas toda família infeliz é infeliz do seu próprio jeito” Se a teoria lida com abstrações generalizáveis, a literatura lida com individualidades irredutíveis.

Daí, conclui Kermode, “entre todas as outras ficções, as literárias têm seu lugar. Descobrem, para nosso bem, algo sobre a mudança: organizam nossas complementaridades. Talvez façam isso melhor que a história e a teologia, sobretudo porque temos consciência de que são falsas. A ficção do fim é como o infinito mais um e os números imaginários da matemática – sabemos que não existe, mas nos ajuda a dar sentido ao mundo e a nos mover dentro dele”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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