Por Luiz Carlos Merten
Enquanto escrevia sua biografia de Allan Kardec (1804-1869), Marcel Souto Maior enviava os capítulos para o diretor Wagner de Assis, que estourara na bilheteria com Nosso Lar, de 2010. O longa havia deflagrado a onda espírita do cinema brasileiro, e tanto Assis quanto Souto Maior pensavam. “Dá filme”, o Kardec. A O2 já o tinha numa lista de possíveis projetos.
Há um ano, exatamente – 16 de maio de 2018 -, Assis iniciou a filmagem, em Paris. Antes houve a fase de roteiro, de negociações de produção. Mas, então – será mera coincidência? Pois o filme abre-se com uma aula do professor Hippolyte Léon Denizard Rivail, que vai virar Allan Kardec. Entra o sacerdote. Ele protesta em defesa do ensino laico.
O quadro é a França de Napoleão III. “Havia uma forte interferência da Igreja na administração pública, portanto, é perfeitamente válido que um homem que, como professor, foi fundamental para o ensino médio francês, não permanecesse calado”, afirmam ainda o cineasta e o escritor.
Kardec estreia nesta quinta-feira, dia 16, em salas de todo o País. Nosso Lar era tosco, tinha aquele visual brega desprezado como de mau gosto pela crítica, mas foi um megassucesso. Comparativamente, Kardec é uma obra-prima – pelo menos de produção. Visual apurado, certa fluidez do relato. Certa – porque Assis não evita um tanto de solenidade. Kardec tem diálogos que beiram o pronunciamento. É acadêmico, mas é digno.
O próprio Souto Maior admite que, como escritor, seu maior desafio foi encontrar a voz de Kardec. “Pesquisei na Biblioteca Nacional da França, onde tive a sorte de encontrar os exemplares da Revista Espírita que Kardec editou por 11 anos. Ele se correspondia com seguidores da doutrina, e as cartas foram muito importantes porque nelas ele se surpreendia com as descobertas e não escondia a decepção pelos detratores e traidores. Dessa forma, foi possível chegar à sua essência humana.”
Nesse Brasil evangélico, o diretor é o primeiro a manifestar curiosidade – como reagirá o público? “Existem cerca de 15 mil grupos de estudos kardecistas no País, e creio que o interesse desse segmento será grande. O resto é expectativa”, reflete Assis.
Perseguição. Na França, Kardec foi perseguido e até ridicularizado após a morte. No Brasil, sua doutrina renasceu com Bezerra de Menezes e firmou-se com o verdadeiro fenômeno que foi Chico Xavier.
O importante é que o espectador não precisa ser espírita para assistir ao filme. Rivail/Allan Kardec era um estudioso que chegou ao mundo dos espíritos e dos médiuns movido pela curiosidade científica. Enfrentou descrença e todo tipo de resistência – de colegas cientistas, da Igreja, das instituições seculares.
O filme pode ser visto como um manifesto em defesa da liberdade – de expressão e investigação. Um manifesto em defesa da caridade. Numa França devastada pela miséria, Rivail/Kardec ousou defender a solidariedade com o próximo desvalido, outro ponto de contato com o Brasil atual.
“Não é sobre espiritismo, é sobre o pedagogo”, adverte o diretor No currículo, ele tem filmes como o citado Nosso Lar e Menina Índigo, e também foi roteirista, na Globo, de novelas que abordavam o mundo do além. Apesar disso, Assis resiste aos rótulos. “Não existe essa coisa de gênero espírita. Se existisse, teríamos de colocar Ghost – Do Outro Lado da Vida, O Sexto Sentido e Os Outros (refere-se aos filmes de Jerry Zucker, M. Night Shyamalan e Alejandro Amenábar). Parece que só se fala disso no cinema brasileiro, mas para ser uma coisa pejorativa.”
Atores
Leonardo Medeiros, que faz o papel de Allan Kardec, criou-se num ambiente kardecista. “Para mim ele (Kardec) foi um cientista até o fim, movido sempre pela curiosidade científica para entender o mundo e os fenômenos paranormais ao redor dele”, explica.
Sandra Corveloni, que foi melhor atriz em Cannes – por Linha de Passe, de Walter Salles e Daniela Thomas -, faz a mulher guerreira do professor. Não é complicado para uma atriz contemporânea meter-se naquele figurino de época? “Querido, venho do teatro, com o Eduardo Tolentino, no Grupo Tapa. Fazíamos muito os clássicos e o Tolentino sempre teve uma preocupação muito grande com o figurino. A gente estudava as roupas, e como levar aqueles vestidos, aquelas casacas. A roupa integra a criação dos personagens, vira personagem, também.” Medeiros, com sua formação teatral, concorda integralmente.
Ambos, diretor e escritor, destacam a participação do elenco, em especial a da atriz. Na ficção, a mulher de Rivail, que se chamava Amélie, é identificada como Gabi.
“O roteiro já esboçava uma personagem forte, mas foi a leitura de Sandra que nos permitiu dimensionar a importância da mulher na vida de Kardec”, assinala o diretor. Por mais que resista às etiquetas, Assis prepara a sequência de Nosso Lar. Sem entrar em detalhes, garante que será diferente do primeiro filme.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.