Por Renato Vieira
Para João Bosco, a descoberta de novos caminhos para canções já conhecidas está situada no mesmo território do ineditismo. O violão singular o guia nesta jornada que começa em casa, com a lembrança de músicas próprias e alheias, que podem ir de um antigo samba-enredo a standards do jazz.
“A música tem um dinamismo, o autor não pode deixá-la imóvel. Vez por outra é preciso tirá-la daquele conforto”, conceitua Bosco. Esta convicção é o mote de Abricó-de-Macaco, álbum que chega às plataformas digitais em 17 de abril. Um DVD com o registro das sessões de estúdio, que ocorreram em outubro do ano passado, sai posteriormente, com exibição prevista para maio no Canal Brasil.
Com 16 faixas, Abricó-de-Macaco não repete nenhuma música de 40 Anos Depois (2012), outro trabalho de caráter retrospectivo de Bosco. Para o novo projeto, ele concebeu um mosaico de sons com origens diversas, mas passando por referências brasileiras. Não é coincidência que a faixa-título, uma das duas inéditas do repertório, faça alusão a uma árvore amazônica com frutos e flores que chamam atenção.
Abricó-de-Macaco tem estrutura semelhante a um clássico de Bosco, Linha de Passe. Francisco Bosco, filho do cantor e compositor, fez a letra do novo samba e pegou emprestado da música de 1979 o verso “babaluaê, rabo de arraia e confusão”, estabelecendo uma conexão lírica entre ambas.
“É como se fosse uma linha de carretel que, quanto mais você puxa, mais linha vem. As duas músicas falam das coisas que existem entre o firmamento e o chão”, aponta Bosco.
Francisco ainda colocou letra em Horda, a outra inédita. Com quase oito minutos e uma atmosfera de tensão, é definida por Bosco como “uma suíte das confusões e do tumulto, algo que a gente vive no Brasil em momentos específicos” e inclui uma citação de O Galho da Roseira, de Hermeto Pascoal.
Os instrumentistas que acompanham o artista ficaram à vontade para preencher espaços. Essa faceta é percebida já na primeira faixa, Mano Que Zuera, com uma longa introdução sustentada por Ricardo Silveira (guitarra), Guto Wirtti (baixo) e Kiko Freitas (bateria).
A presença do trio é fundamental na nova versão de Cabeça De Nego, gravada no disco homônimo de 1986 com violão e vocais dobrados do próprio Bosco. O sax soprano da israelense Anat Cohen dá um colorido especial à releitura.
Das músicas gravadas anteriormente, Profissionalismo é Isso Aí teve a transformação mais radical. O samba sobre a malandragem que Bosco e o letrista Aldir Blanc fizeram para a Banda Black Rio se tornou um blues. O cantor e compositor lembra que os estilos compartilham a origem africana. “O blues e o samba têm afinidades na alegria e também na dor. Quis retomar essa música na forma de blues e o resultado ficou interessante”, diz Bosco.
Cantores da cena contemporânea do Rio de Janeiro, Alfredo Del-Penho, João Cavalcanti, Moyseis Marques e Pedro Miranda estão presentes em duas faixas. Bosco participou de um show deles em homenagem a Jackson do Pandeiro em 2019 e, no encontro para definir o repertório da apresentação, se lembrou que já havia gravado Forró em Limoeiro.
O novo registro tem citações de Galope, de Gonzaguinha, e Morena do Grotão, de João do Vale. “Essa música virou uma espécie de suíte nordestina e cada um faz sua participação como se Forró em Limoeiro fosse o berço daquilo”, afirma Bosco. Ele também recebe os quatro intérpretes em Pagodespell , parceria de Bosco com Caetano Veloso e Chico Buarque que partiu de poemas escritos por Oswald de Andrade.
Algumas músicas de outros autores que entraram em Abricó-de-Macaco se relacionam com momentos significativos da vida de Bosco. Ele se recorda de uma cena do filme A Noviça Rebelde (1965) em que a personagem de Julie Andrews canta My Favorite Things para distrair os filhos do capitão Von Trapp durante um temporal. Desde criança, o cantor e compositor teme as tempestades.
Ao ouvir a versão do saxofonista John Coltrane, ele percebeu que a canção poderia se encaixar em outro contexto. “Coltrane tirou a canção daquela tempestade, daquele medo e a levou para onde o jazz mora”, ressalta Bosco, que registrou o tema da dupla Rodgers e Hammerstein apenas com violão e vocalises.
Exemplar da parceria de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, Água de Beber ganha releitura no formato voz e violão. Em conversas com o poeta, seu primeiro parceiro, Bosco descobriu que a tal ‘água de beber’ era uma aguardente norueguesa chamada Aquavit.
Durante passagem recente por Ilhéus para um show com Toquinho, outro parceiro de Vinicius, ele descobriu que o dono da pousada tinha morado na Noruega e perguntou se o homem conhecia a tal bebida. O proprietário não só sabia do que se tratava como ofereceu aos hóspedes meia garrafa. “É uma bebida fortíssima, alucina. A partir daí me senti apto a gravar a música porque agora eu sabia qual era o sabor”, explica.
No carnaval de 1985, Bosco estava na Sapucaí quando viu o desfile da Estácio de Sá, que foi para a avenida com Chora, Chorões, uma homenagem ao choro. Ele se surpreendeu com o samba melodioso, que em nenhum momento cita a agremiação. “É um samba que pega várias regiões sonoras brasileiras. Quando eu estava na feitura do disco, achei que ficaria muito bem nele.”
Enquanto vive a expectativa do lançamento de Abricó-de-Macaco, Bosco se mantém resguardado por conta do novo coronavírus e se aprofunda ainda mais na redescoberta de canções. Recentemente, ele tocou em casa um clássico da parceria com Aldir Blanc, Caça à Raposa, e refletiu sobre o verso “recomeçar como canções e epidemias”. “Como diz a canção, é preciso recomeçar. E, neste momento, tudo que eu tenho é o violão.”
O perfil oficial de João Bosco no Instagram foi criado em fevereiro deste ano (@joaoboscoreal) e atualmente é seguido por mais de 12 mil usuários da plataforma. Ele conta que a ideia de entrar na rede social veio da filha, Julia, que cuida da agenda do cantor e compositor. “Sempre fui analógico, mas o mundo digital presta um grande serviço a gente. O jovem tem o mundo digital na mão. Se você não estiver ali, não dá para encontrar com eles”, afirma Bosco.
Além de vídeos em que aparece tocando violão, há fotos históricas, como a que registra o encontro de Bosco, Chico Buarque, Dorival Caymmi e Luiz Gonzaga com o ex-ministro da cultura francês Jack Lang.
João Bosco
Abricó-de-Macaco
Nas plataformas digitais em 17/4
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.