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Inteligência e seus descontentes (35): a constatação da morte da competência individual

(dedicado ao amigo de reflexões, cuja inteligência e sabedoria ocupam seu próprio nome, Dr. Brasil Salomão)

Embora muitos tentem negar, o fato é incontestável: diferenças individuais em inteli­gência importam no trabalho, na escola, na vida cotidiana e em muitas outras arenas da vida. Neste contexto, importa saber que essas diferenças têm importantes consequências, sendo a mais imediata que uma pessoa tem grande dificuldade em imaginar que o pro­cesso de pensamento de alguém, com um QI muito superior, digamos 10 ou 15 pontos a mais que o seu próprio, é muito diferente. Tal constatação causa problemas quando pessoas num nível de QI fazem julgamentos ou recomendações para pessoas cujo QI é muito diferente do seu próprio porque as mesmas pro­jetam seu nível de competência para os outros.

Dia a dia, a morte da competência individual tem sido cada vez mais evidente. Ninguém mais aceita que uma pessoa saiba mais que outra, que tenha mais conhecimento que muitas outras, que seja mais inteligente que outras tantas ou que se apresente como um perito em deter­minado assunto. Todos passaram a se julgar igualmente competentes na medicina, no controle da pandemia da Covid-19, nas leis e no direito, na enfermagem e na fisioterapia, entre outros, mesmo cientes de não serem tudo isso. E sem diferenças para mais e para menos, todos se autodeclararam terem a voz da inteligência máxima.

Na realidade, isto constitui uma forma especial do que é conhecido como falácia do psicólogo. Em outras palavras, trata-se da tendência de uma pessoa assumir que outros pensam, e agem, mais ou menos da mesma maneira que elas agem. Ironicamente, pessoas muito inteligentes são aquelas que pertencem aos grupos mais susceptíveis a isso, tendendo a acreditar que cada um pensa e soluciona problemas tão bem como elas o fazem, e isto pode ter consequências importantes quando pessoas de alto QI lidam com outros segmentos da população.

Um amigo, notável estudioso da inteligência, nos relata que não considerar o impacto das diferenças de inteligência na tomada de decisões pode ser algo muito sério. Ele exem­plifica-nos com o fenômeno das confissões falsas no sistema criminal de justiça, que tem sido uma fonte principal de evidência que “envia” pessoas inocentes para a prisão. Um dos fatores de risco por falsa confissão é um QI baixo. Pessoas com inteligência abaixo da média são mais vulneráveis às táticas de interrogação e podem não entender seus direitos constitucio­nais. Eles podem também, e até incorretamente, acreditarem que confessar os permitirá escapar de um interrogatório de alta pressão e que eles poderão provar-se inocentes posteriormente.

Do mesmo modo, um corpo de jurados, constituído por pessoas com inteligência média, pode não entender o processo de pensamento e confusão que leva a uma pessoa com QI baixo a falsamente confessar um crime. Tal corpo de jurados poderia ver a falsa confissão como sendo verdadeira e escolher encaminhar uma pessoa inocente à prisão baseando-se na crença incorreta de que cada um é suficientemente brilhante para entender porque é imprudente confessar falsamente um crime. Numa escala maior, as diferenças em como pessoas, com alta e mediana inteligência, ou pessoas com baixo QI, quando pensam, possam vir a causar problemas porque pessoas brilhantes têm uma palavra desproporcional sobre como a sociedade é administrada, também é considerável.

Finalmente, outra manifestação da ignorância que os indivíduos de alta inteligência têm das limitações das pessoas com baixa inteligência ocorre no contexto médico. Pessoas com inteligência abaixo da média frequentemente enfrentam dificuldades em cumprir as prescrições e reco­mendações de seus médicos para tomarem as medicações e aderirem ao indicado, engajando-se com dificuldade em autocuidados. E mesmo tarefas básicas, tais como entender uma receita médica, ou uma bula de um medicamento, são difíceis para pessoas com um QI abaixo da média, ou mesmo próximo da média. Também, tarefas mais complexas, como controlar a diabetes, são praticamente impossíveis de serem desempenhadas adequadamente por pessoas com baixo QI. Fatos, estes, que levam médicos, e demais profissionais de saúde, com QI mais elevado, a adaptar seus tratamentos para esses pacientes, evitando o insucesso do mesmo, especialmente se os clínicos acreditarem, por demais, na adesão do paciente.

Mais que uma constatação, o declínio da competência individual, e o excesso de em­penho na criação da inteligência artificial, desvinculada de melhorar a qualidade de vida humana, reforçam a constatação de genocídio da vida na terra. Que nos reforcem tais constatações os analistas comprometidos com as mudanças evidenciadas no Antropoce­no em tempos de cognição.

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