Por Ubiratan Brasil, enviado especial
Quando o pessoal de documentação fotográfica do Instituto Moreira Salles começou a manusear o conjunto de imagens adquirido de um marchand, percebeu que ali não havia apenas fotografias do poeta Vicente de Carvalho (1866-1924) – junto, estavam também 24 cartas que o escritor trocara com um grande amigo, Euclides da Cunha (1866-1909). Trata-se de uma raridade pois, até o momento, eram conhecidas apenas as missivas enviadas pelo autor de Os Sertões. “O achado possibilita o estabelecimento de um diálogo, ainda que de forma lacunar, e amplia o sentido das oito já conhecidas”, observa Elvia Bezerra, coordenadora de literatura do IMS e autora de um texto a respeito da correspondência publicado na edição especial da revista serrote, editada pelo instituto e lançada durante a Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, que homenageia Euclides.Foi em Santos que o escritor e o poeta solidificaram sua amizade “Ali, em janeiro de 1904, Euclides assumiu o cargo de engenheiro fiscal da Comissão de Saneamento, onde ficou até abril – apenas quatro meses”, conta Elvia. “Na mesma época, Vicente de Carvalho reabriu seu escritório de advocacia na cidade, depois de uma malograda experiência como fazendeiro. É a partir da saída de Euclides do cargo que se conhecem as cartas trocadas entre os dois.”
No material avaliado por Elvia e sua equipe, adquirido, em 2002, do colecionador Giuseppe Baccaro, há uma série de detalhes e semelhanças que justificam os laços de amizade. “Ambos, e cada um a seu modo, amaram a natureza. Quiseram, e conseguiram, a suposta imortalidade prometida pela Academia Brasileira de Letras – a correspondência entre os dois mostrará a que preço”, anota a pesquisadora, lembrando ainda de um detalhe curioso: Euclides e Vicente eram supersticiosos. Citando o trabalho realizado pelo historiador Roberto Ventura para a edição do Cadernos de Literatura Brasileira dedicada a Euclides, Elvia cita o relato feito pelo autor de Os Sertões a Coelho Neto a respeito da visão que o perseguia constantemente, durante o período em que ficou acampado a trabalho: uma mulher vestida de branco, que lhe dizia: “A estrada do cemitério já chegou à porta da fazenda”.
Vicente de Carvalho também fazia restrição ao mesmo número, chegando a desistir da candidatura à Academia Brasileira de Letras em 1905 porque sua mulher suspeitava que ele morreria se tomasse posse na cadeira a que concorria, de número 13. Na dúvida, deixou para 1909, quando foi eleito. Tamanho cuidado não impediu que terminasse com o braço esquerdo amputado, depois que sua mão inflamou, ferida durante uma pescaria em alto-mar. Mesmo assim, não perdeu o humor, repetindo sempre: “Camões não foi manco de um olho? Eu sou caolho de um braço”.
Outro fator que facilitou a convivência entre eles era O Estado de S.Paulo – Euclides passou a colaborar com o jornal em 1888, quando ainda se chamava A Província de São Paulo, a convite de Julio de Mesquita, diretor do jornal.
“Deve ter sido natural encontrar Vicente de Carvalho, paulista que nunca deixou seu Estado, no meio jornalístico”, conta Elvia, lembrando ainda que a mulher do poeta, Ermelinda de Mesquita, conhecida como Biloca, era irmã de Julio de Mesquita.
Todos os livros que fazem referência à correspondência trocada entre o escritor e o poeta citam apenas as oito cartas assinadas por Euclides – daí a importância da descoberta feita pelo IMS. Elvia conta que a primeira resposta de Vicente não consta nesse conjunto de 24 peças. Seria o retorno à carta em que Euclides fazia uma curiosa descrição de si próprio: “É que homem prático, massudo, enrijado nessa engenharia rude – não avalio as grandes abstrações dos sonhadores e as promessas enganadoras dos poetas. .”.
Assim, a carta mais antiga com a assinatura do poeta data de 24 de abril de 1904. E a última de 1909, ano da morte de Euclides em um crime passional, assassinado pelo amante de sua mulher. Em 27 de janeiro, Vicente lhe escrevia: “Acabo de receber a tua carta, e alarma-me a rajada de desgraças em que me falas; mas espero que seja isso apenas um exagero de impressão, e que se trate de uma série dessas contrariedades pequenas mas irritantes de que a vida é tão cheia”.
Mas o tempo provou que não era. “A última carta de Euclides da Cunha, de 10 de fevereiro de 1909, mostra que ele apreendia o futuro: ‘Quem definirá um dia essa Maldade obscura e misteriosa das coisas, que inspirou aos gregos a concepção indecisa da Fatalidade?'”, observa a pesquisadora.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.