Por Luiz Carlos Merten
Há 12 anos, quando Fernando Meirelles fez Ensaio Sobre a Cegueira, a adaptação do romance de José Saramago era só um exercício de ficção. Saramago (1922-2010) publicara seu livro em 1995; três anos mais tarde, receberia o Prêmio Nobel de Literatura de 1998. Meirelles também já havia adquirido projeção internacional com as quatro indicações para o Oscar de Cidade de Deus. Rebatizado como City of God, o filme de 2001 concorreu, em 2004, nas categorias de melhor direção, roteiro adaptado, fotografia e montagem. Blindness, o título em inglês, virou um filme de prestígio. Teve direito a exibição em Cannes, ganhou ou foi indicado para numerosos prêmios. E tinha aquele elenco – Julianne Moore, Mark Ruffalo, Gael García Bernal, Alice Braga, Danny Glover, etc.
Ensaio/Blindness convidava o público a olhar para um futuro (não tão distante) distópico, usando a cegueira como metáfora para um movimento da própria humanidade rumo à sua destruição. O vírus era uma liberdade ficcional. A vida seguiu, Meirelles fez novos filmes e, este ano, com Dois Papas, voltou ao Oscar.
Meirelles, como toda população, cumpre agora quarentena por conta de um vírus real que rapidamente se espalha pelo planeta. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, ele reflete sobre o filme que fez e a realidade atual. Ao longo da década, ele se tornou ativista, cada vez mais preocupado com o clima. E propõe que a quarentena ajude a repensar, também, esse outro problema crucial.
Agora com distanciamento crítico, já é possível avaliar com mais clareza o que o levou a adaptar o romance de José Saramago?
Há muito tempo, sinto que nossa civilização está apoiada em pilares muito frágeis. Para onde se olha há o anúncio de alguma crise sem solução. Desigualdade social, esgotamento de recursos naturais, os oceanos, as geleiras, crise de refugiados, emissões de CO2. A lista é enorme. Saramago me impressionou muito nos anos 90, achou uma forma inesperada de falar sobre esta fragilidade que me tocou. A ideia da cegueira é uma ótima metáfora, pois todas essas crises estão na nossa frente, milhares de pessoas dizem o tempo todo que precisamos mudar nosso modo de vida, mas continuamos andando como cegos na mesma direção.
O livro projeta no futuro uma sociedade distópica. Na época, já se procurava ver nesse futuro uma representação do presente. Hoje, estamos sendo atropelados por uma pandemia de verdade. Como vê essa passagem da ficção para a realidade?
Na semana passada, a minha produtora, O2 Filmes, estava lotada com três séries e um longa sendo rodado. Havia umas 650 pessoas trabalhando e eu estava angustiado porque precisava ler algumas coisas mas não conseguia tempo. Quem diria que seis dias depois a produtora estaria às moscas e eu ansioso em casa, diante de tanto tempo que me sobra? Fronteiras fechadas, a vida brecada, cisnes de volta aos canais de Veneza. Se um roteirista me apresentasse esse argumento, eu não o contratava nem a pau, acharia delirante, muito descolado da realidade. Fica provado, a realidade muitas vezes supera a ficção.
O que parecia um fenômeno local – na China – adquiriu uma dimensão planetária em pouquíssimo tempo. O filme também traça, em duas horas, esse quadro que vai do particular para o geral. O apocalipse. Como o criador vê o horror feito real?
Há uma sequência no filme em que uma montagem de más notícias mostra a evolução do que se passa ao redor do mundo. Pensei nessa sequência diante do que você chama de ‘horror feito real’. Existem dois horrores que me assustam. A tão falada falta de leitos hospitalares e a perspectiva de 38 milhões de trabalhadores informais, que ganham durante o dia o jantar da noite, ficarem sem poder trabalhar. Essa segunda é mais assustadora. Diaristas, encanadores, motoristas de aplicativos, vendedores comissionados, feirantes… Nesse caso, os idosos não são os grupos de risco, quem sofrerá serão as crianças, os adolescentes, famílias inteiras. O horror, o horror… Nem menciono a possibilidade de uma convulsão social e que países ricos não sofrerão. Parar completamente o país pela falta de leitos faz sentido, mas é uma escolha de Sofia. Fico muito tenso ao pensar nisso.
Uma importante revista, na edição da semana passada, traça um quadro do vírus na ficção lembrando O Sétimo Selo, Maravilhoso Boccaccio, O Enigma de Andrômeda, A Peste, Contágio. Devem ter-se esquecido de Ensaio sobre a Cegueira. Essas obras foram referências para a realização do Ensaio? Alguma favorita?
Nem assisti a todos esses filmes. Mas eles estão na minha lista. Mas lembro de ter visto O Senhor das Moscas (Peter Brook, 1963) e o filme me deu bons insights sobre como as regras e relações de poder mudam e as personalidades se revelam ao sermos colocados numa situação excepcional.
Você tem revelado uma preocupação ecológica grande em relação à Amazônia e ao reflorestamento. Como fica isso diante de uma crise que é mais urgente?
Minha maior atenção atualmente é com a crise do clima, as florestas são só uma parte do pacote. A covid-19 é menos do que a tal ‘gripinha’ como o outro lá chamou, mas o problema do clima é maior. Em número de mortes, não dá nem para comparar. Elas estão vindo, e numa velocidade enorme, mas falar em problemas em 2050 ainda parece muito distante para quem está focado nos eventos da semana. Nosso radar interno não está preparado para captar a velocidade aparentemente baixa dos acontecimentos provocados pelas mudança do clima. A diferença é que a crise da covid-19 passará em 3 ou 4 meses e, para a crise do clima, não existem anticorpos. Por favor, não estou menosprezando a pandemia, ela me tira o sono, mas comparativamente é ‘peanuts’.
Como você avalia o que está sendo feito no País para combater o coronavírus?
O País está conseguindo parar ou ao menos reduzir drasticamente a interação social. Ha um espírito cívico no ar. Vejo jovens que não se expõem, não para se proteger, mas para não colocar os mais velhos ou o mundo ao redor em risco. Acho muito bonito. Não quero soar holístico, mas parece que a natureza está mesmo querendo nos dizer alguma coisa. Essa brecada do mundo pode nos ensinar muitas coisas, não podemos perder a oportunidade de observar e refletir. Seria lindo se não voltássemos desenfreados para o mesmo life-as-usual que estávamos levando. Semana que vem vou ficar quieto no interior para ver se escuto melhor o silêncio e aprendo alguma coisa. Quanto ao que dizem o Bananinha e o Bananão sobre isso tudo – quem se importa?
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.