Luiz Paulo Tupynambá *
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Muita gente fala, mas pouca gente sabe o que é a chamada “América Profunda”. O termo não se refere a um lugar distante, mas sim a uma forma de ser “americano da gema”. A expressão ‘hillbilly’ significa literalmente caipira, pessoa que vive num lugar atrasado e rural. Lembra da Família Buscapé? É isso, são os descendentes dos primeiros colonos que habitam as cadeias de montanhas da Costa Leste, as Apalaches. Vivem em pequenas localidades, os ‘PoDunks‘, cuja melhor tradução seria ‘fiofó do mundo’. Só para esclarecer: o termo ‘redneck’ (pescoço queimado de sol) é mais usado para os trabalhadores em plantações dos vales dos rios Missouri e Mississipi.
‘América profunda’ não é só isso. É uma maneira de pensar e viver que vem sendo moldada, para o bem ou para o mal, desde a Declaração da Independência. Começa com os filhos e netos dos fundadores das Treze Colonias. Foram os primeiros a enfrentarem os soldados ingleses na Guerra da Independência. A vitória na guerra sobre o maior império do mundo na época os transformou de ex-colonos subservientes em cidadãos livres donos dos seus destinos. Compreender como pensam essas pessoas é a chave para entender a ‘América Profunda’. Um ideal de nação que leva cidadãos e cidadãs septuagenários, brancos e imaculados, a deixarem de lado o bingo semanal ou a polca vespertina para saírem pelas ruas berrando “Maga!”. Como se explica isso? Basta você interpretar o discurso do candidato a vice-presidente pelo Partido Republicano, Senador D. J. Vance.
Mas quem é ele? É um militante de direita que ficou famoso ao publicar um livro em 2016, ano da eleição de Trump para seu mandato presidencial, com fortes críticas contra as ideias de Trump. Esse livro se chama “Era uma vez um sonho: A história de uma família da classe operária e da crise da sociedade americana”. Considerado uma autobiografia, narra a história de uma família que migrou para o Cinturão da Ferrugem, região do nordeste dos Estados Unidos, com diversas minas e siderúrgicas. Até meados da década de 80, era considerada uma região de oportunidades para famílias de operários brancos americanos, mas a recessão econômica e a concorrência do aço importado provocaram uma crescente decadência econômica e social das famílias operárias. Em 2017, publicou o livro “Hillbilly – uma elegia rural”, onde expõe as reflexões de um jovem estudante de direito que conseguiu deixar o ambiente tóxico vivido por sua família na região das Apalaches.
Diz a lenda que Donald Trump viu o sucesso dos livros e resolveu trazer o jovem advogado e militante político para seu lado, incorporando várias ideias dele em seus discursos. Ex-fuzileiro naval voluntário, formado em Direito em Yale, elegeu-se Senador pelo estado de Ohio em 2023 e agora é candidato a vice-presidente na chapa republicana. Filho de pais divorciados, viveu em uma família conturbada, onde o desemprego e a falta de perspectivas sociais e econômicas eram presentes no cotidiano. Era o elo que faltava para Trump se ligar com o importante segmento de direita representado por pequenos fazendeiros e a comunidade pentecostal, que desde a década de 80 se afastou do Partido Republicano, por creditar a Ronald Reagan a falência de mais de um milhão de fazendeiros no ‘Corn Belt’ e dezenas de pequenas cidades do Cinturão da Bíblia. Também é um aval para manter a promessa de recuperar o Cinturão da Ferrugem, que não conseguiu cumprir no seu primeiro mandato.
Em seu discurso de aceitação da indicação para candidato à vice-presidência, na noite de quarta-feira na Convenção Republicana, J. D. Vance expôs um grave problema de saúde da sociedade estadunidense muito pouco falado pela imprensa brasileira: a epidemia do vício em fentanyl. A mãe dele, como milhares e milhares de pessoas naquela região, viciou-se, mas está ‘limpa’ há nove anos. Tentou fazer uma surpresa, ao propor comemorar os dez anos de abstinência em janeiro de 2025 na Casa Branca ao lado de Trump. Corte rápido de câmera dela para Trump, de orelha enfaixada e um sorriso forçado. Duas mazelas estadunidenses num corte rápido: a violência das armas liberadas e a desilusão social do vício, atingindo os brancos e não só os negros e latinos.
A apresentação de sua mãe em recuperação serviu como introdução de outra mulher no discurso, sua avó, logo identificada como ‘Méma’ que é a forma, segundo J. D., dos ‘hillbillies’ chamarem carinhosamente as ‘vovós’. Essa nova personagem foi a responsável, sempre segundo ele, para não permitir que o neto entrasse no vício, tendo inclusive ameaçado um amigo dele de atropelamento caso insistisse a se encontrar com o neto querido e inocente. Para comprovar o compromisso que ‘Méma’ tinha em defender sua família, contou que ele e os parentes encontraram nada menos que dezenove armas de fogo, entre fuzis, espingardas e pistolas, devidamente carregadas e limpas espalhadas em vários locais da casa da ‘Méma’ no dia de seu falecimento. Não mostraram Trump nesse momento, mas tenho certeza que ele se lembrou do zumbido da bala que quase acabou com sua vida.
A Netflix tem uma série baseada no livro “Hillbilly, uma elegia rural”. Vale a pena assistir. J. D. tem apenas 39 anos e é o futuro da América Profunda e do Partido Republicano. O que você acha de um ‘hillbilly’ adepto do “Maga” com um botão detonador nuclear nas mãos?
* Jornalista e fotógrafo de rua