O surgimento da direita antropofágica tem revelado despudor no exercício do Poder, já que ele é adotado como protetor de familiares e amigos, e nessa dimensão nanica apequena os símbolos, a diversidade cultural, as diferenças regionais, a justiça social e o Brasil como país soberano e democrático, nação sequestrada.
Não é por falta de estudo que as barbaridades sociais são ignoradas, ou se tornam invisíveis. É mesmo a cara dura da hipocrisia que mobiliza os herdeiros divinos das riquezas mundanas, herdadas. Eles se tornam vítimas do hábito da expropriação geral de riquezas e da expropriação geral da humanidade das pessoas com as quais se relacionam, especialmente na relação de trabalho não remunerado.
Essa mentalidade discricionária e escravista está incorporada à história pessoal e familiar e social e quando exposta à clareza solar ela apresenta a carne viva do racismo num exemplo nada edificante, que nos coloca muito aquém do estágio de civilização, que nos serve de ilusão.
Para o livro de Jesse Souza “Como o racismo criou o Brasil”, seguramente, é mais do que suficiente para agregar à sua tese, muito densa já, a inesperada expressão dessa violência verbal, proclamada pelos proprietários de vinícolas de Bento Goncalves, no Rio Grande do Sul, autuados pela denúncia comprovada do trabalho análogo ao da escravidão.
Se o ato-fato foi absolutamente surpreendente, pois, há produtos produzidos ali que já tiveram reconhecimento internacional, a justificação verbal que foi dada para essa ocorrência é igual à elegância do bandido, que olha sua obra com ares de benfeitor histórico. Afinal, para ele todo pessoal transportado do Nordeste brasileiro, amontoado ali, para o trabalho das vinícolas, ia mesmo morrer de fome.
E a arrogância daqueles empresários, certos da impunidade, premiou a perplexidade de quem não acreditava que poderia existir uma narrativa tão nua e crua de discriminação e de racismo.
O jornal O Globo noticiou assim: “A associação dos proprietários de vinhedos culpa o Bolsa Família. Aparentemente, as pessoas estariam trocando trabalho não remunerado e castigos físicos, por auxílio financeiro – pasmem! – para serem ressarcidos dos prejuízos causados pelo programa social os vinicultores querem que seja criado o programa: Minha Casa-Grande, Minha Vida”.
Lê-se no mesmo texto a arrogância fluente: “As denúncias de trabalho escravo em vinícolas de Bento Gonçalves foram encaradas com naturalidade pelos proprietários; é uma receita que está na família há mais de 200 anos; e com a tradição não se brinca”.
Talvez nenhum livro sobre a escravidão tenha gravado da boca escravocrata confissão tão explícita, a respeito de nosso passivo social, construtor da prisão na qual o povo foi colocado e nunca saiu. Uma prisão construída secularmente pelas elites, que não percebem a invisibilidade das paredes, pois, seus olhares são para o exterior, e não para a rica realidade humana e social de nosso país.
O estudo de sociólogos nossos tentaram explicar o que resultou desse passado, que assombra o presente pela discriminação e pela violência. Por exemplo, a explicação do “brasileiro cordial” foi uma verdadeira cortina de fumaça perante a realidade exigente de análises cirúrgicas para liberar nossas raízes ao oxigênio da igualdade. O racismo científico sossegou a consciência de quem explorava o braço vivo do trabalho. O fato é que a realidade histórica é a realidade da desigualdade, da pobreza, cercada por condições sociais e econômicas assim desiguais, com a distância enorme entre o rico e o pobre.
Infelizmente, hipocrisia histórica não é crime. E o pedido de desculpas públicas apresentadas por uma das vinícolas não altera o núcleo duro da consciência genuinamente escravocrata.