Antes de morrer, aos 85 anos, em dezembro de 2022, vítima de complicações de uma cirurgia na vesícula, a escritora brasileira Nélida Piñon fez constar em seu testamento que sua herança milionária, incluindo quatro apartamentos em um condomínio de luxo, próximo à Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, ficaria para as suas duas cadelas Suzy e Pilara, uma pinscher de 13 anos e uma chihuahua de 3, respectivamente.
Filha única, sem filhos e sem parentes próximos — exceto por alguns primos na Bahia e outros no Rio —, Nélida preocupou-se em garantir que o padrão de vida de suas cachorrinhas não iria cair após a sua morte. As duas são registradas com o sobrenome da família — Suzy Piñon e Pilara Piñon -, esta última batizada em homenagem à bisavó da escritora.
Para viabilizar sua vontade, a escritora deixou como beneficiária da sua herança Karla Vasconcelos, sua assessora e responsável por ela nos últimos 25 anos. No testamento, no entanto, ela estabeleceu regras que devem ser obedecidas nos cuidados com os animais. Também determinou que os imóveis não poderão ser vendidos enquanto as cachorras estiverem vivas.
Em alguns países é possível deixar a herança diretamente para o pet. Já no Brasil, tal prática ainda não é legalizada. Assim, para não deixar os animais desamparados, é preciso favorecê-los indiretamente. O direito brasileiro estabelece que apenas a pessoa humana – física ou jurídica -, pode herdar, conforme artigos 1.798 e 1.799 do Código Civil. Desta forma, a realização de testamento para destinar a herança diretamente a um pet seria considerado um negócio jurídico inexistente, ou seja, sem valor.
Existem duas maneiras de favorecer os animais em caso de morte do tutor: por meio de um testamento público ou de uma escritura pública de doação com encargo. O testamento público é a maneira mais comum e trata-se do estabelecimento de um encargo ao beneficiário. Ele receberá o patrimônio conforme previsão contida no testamento, mas terá a atribuição de cuidar do animal.
Nele pode ser incluída qual o valor ou bem será destinado à pessoa que terá a atribuição de realizar todos os cuidados vinculados ao animal. Além disso, podem ser acrescentadas orientações gerais relacionadas aos cuidados com o pet, como indicação de médico-veterinário para acompanhamento e outras especificações eventualmente necessárias. Se o herdeiro nomeado se recursar a cuidar do animal, outra pessoa será indicada e beneficiada para a missão.
Doação
Outra forma de beneficiar os pets é a escritura pública de doação com encargo. Prevista no artigo 553 do Código Civil ela prevê a condição de que receber os bens é cuidar do pet. O tutor poderá criar uma fundação ou nomear alguma já existente, com a finalidade de cuidar e proteger o animal, utilizando os recursos deixados como herança. Independentemente da opção escolhida, testamento ou doação, somente 50% do valor de herança poderá ser destinado ao favorecimento dos pets. Os outros 50% precisam ser destinados aos herdeiros necessários, tais como o cônjuge, os descendentes e ascendentes.
O novo conceito de animais de estimação
A advogada Andréa Corrado já foi vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Ribeirão Preto no triênio 2019/2021. Atualmente é presidente da Comissão de Defesa dos Direitos dos Animais da entidade e representante-suplente junto ao Conselho Municipal de Bem-Estar Animal de Ribeirão Preto. Ao Tribuna Ribeirão ela falou sobre a relação dos tutores com seus pets, que tem mudado muito nos últimos anos.
Tribuna Ribeirão – O conceito de animais de estimação mudou muito nos últimos anos. Quais foram essas mudanças em relação à proteção dos animais?
Andréa Corrado – Conforme mais avança o tempo, mais percebemos a proximidade entre os animais domésticos com os seres humanos, quando falamos em animais de estimação. Ao correr do tempo, criou-se vínculos bastante afetivos com esses animais, hoje considerados como parte da família nos lares em que vivem. Todos os animais são detentores de direitos, assegurados pela Lei de Crimes Ambientais (Lei n. 9.605/98) e também pela nossa Constituição Federal. De acordo com a Lei de Crimes Ambientais, em seu artigo 32, configura-se crime a prática de qualquer ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos.
Entretanto, a referida Lei sofreu uma alteração pela Lei 14.064/20, ficando estabelecido que, em relação aos animais domésticos, quando se tratar de cão ou gato, a pena para estas condutas será de reclusão, de dois a cinco anos, multa e proibição da guarda. No caso de morte do animal, a pena é aumentada de um sexto a um terço. A vulnerabilidade destes animais que se encontram no interior dos lares faz com que haja uma maior preocupação com o seu bem-estar e sua dignidade, sendo necessário o rigor da lei para coibir a prática de maus tratos.
Tribuna Ribeirão – A nomenclatura dono também cedeu lugar para tutor. Isso ajuda?
Andréa Corrado – Entendo ser importante essa mudança na nomenclatura, até mesmo para que esses animais sejam vistos de forma diferente e com maior preocupação e zelo por todos. Quando se fala em “dono” de um animal, causa-nos impressão de que os animais são considerados e vistos como “coisas”. Essa ideia de objetificação precisa ser combatida e estamos caminhando num processo de ressignificação e conscientização, muito importante e necessário. Ao nos referirmos à existência do “tutor” de um animal, nos vem a consciência de que os animais são seres sencientes, possuidores de sentimentos e sensações, e não objetos ou coisas.
Tribuna Ribeirão – Maus tratos a animais podem dar penalidades de quantos anos de prisão, e como é fixado o valor das multas?
Andréa Corrado – A Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98), em seu artigo 32, dispõe que “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos, é prevista pena de detenção de três meses a um ano, e multa”. Já no caso de cães e gatos, a pena para as condutas descritas anteriormente será de reclusão de dois a cinco anos, multa e proibição da guarda. E no caso de morte do animal, a pena será aumentada de um sexto a um terço. O valor da multa será fixado judicialmente, quando o juiz analisará o fato concreto e aplicará as penalidades legais ao autor do crime.
Tribuna Ribeirão – Embora os pets não sejam reconhecidos como sujeitos de direito, é possível fazer um testamento em prol do bem-estar do animal. Comente.
Andréa Corrado – De acordo com a nossa legislação, a capacidade para suceder é exclusivamente da pessoa humana, ou até mesmo da pessoa jurídica. Os animais não podem receber bens, já que não são detentores de personalidade jurídica. Entretanto, há a possibilidade de se fazer um testamento a fim de garantir os cuidados e o bem-estar de um animal, sendo realizado de forma indireta, onde é indicado certo bem ou valor a uma pessoa, a quem caberá o encargo de cuidar do animal, com a condição de atender às suas necessidades. Para nossa legislação, embora haja um entendimento de que esses animais ainda não são reconhecidos como sujeitos de direito, alguns tribunais entendem que os animais possuem certos direitos, havendo discussões em Varas de Família, como ocorre em casos de divórcios e dissolução de uniões.
Tribuna Ribeirão – Esse tipo de proteção após a morte do tutor é importante?
Andréa Corrado – Sem dúvida. A preocupação e os cuidados que antes eram despendidos pelo tutor, na falta deste, serão substituídos pelo novo cuidador, nomeado anteriormente em testamento pelo falecido. Diante de tal incumbência, caberá a esse novo tutor prover todas as necessidades do animal, visando a saúde e bem estar desse animal que fora beneficiado. Muitos animais, diante do falecimento de seu tutor, ficam desamparados e passam a depender que alguém se disponha a adotá-los. Isso porque, muitas vezes, a própria família não se interessa em manter o animal em sua companhia. É muito triste nos depararmos com situações assim, e há vários casos em que os familiares da pessoa falecida se desfazem desses animais, esquecendo que eles possuem direitos e que tanto bem fizeram a quem já partiu.
Desde criança sempre fui apaixonada por animais, sem distinção. Cresci sempre nutrindo muito amor por eles. Hoje tenho cinco animais em casa, sendo quatro cães e uma gata. A fidelidade e a inocência deles me encantam e a amizade desinteressada e verdadeira que eles oferecem é ímpar. Eu costumo dizer que temos muito a aprender com eles. Diante de tantos atos de crueldade praticados e tantas situações tristes a que são submetidos, eu procuro colaborar para que eles possam ter a dignidade que merecem. Sei que há muito a ser realizado e a demanda é grande, ante o número de animais abandonados e maltratados. Mas acredito que toda colaboração é válida e faz toda diferença na vida de um animal que precisa ser tratado com dignidade.