Quando pensamos em “Gente humilde”, logo nos lembramos daquela maravilhosa canção com letra de Vinícius de Moraes e Chico Buarque e música de Garoto, que emociona: “E aí me dá uma tristeza no meu peito, feito um despeito de eu não ter como lutar. E eu que não creio peço a Deus por minha gente, é gente humilde que vontade de chorar”. Entretanto, meus caros, essa música tem duas versões e histórias incríveis.
Segundo Badeco, um dos integrantes do grupo Os Cariocas, a melodia original foi composta por Garoto em 1945, e consta no diário do compositor que ela foi interpretada na Rádio Nacional, no seu programa que apresentava solos de violões, em 18 de setembro de 1945. A primeira audição pública desta música de que temos notícia, no entanto, aconteceu em São Paulo, no recital de violão de Garoto na Associação Cultural do Violão, dirigida por Ronoel Simões, em 16 de março de 1950.
No Rio de Janeiro, a primeira audição de “Gente humilde” se deu no programa “Musica em Surdina”, na Radio Nacional, em 11/06/1951, com Garoto executando-a em solo de violão. Quem primeiro gravou a obra violonística de Garoto, foi o violonista Geraldo Ribeiro (“Garoto por Geraldo Ribeiro”, Arlequim ARLP-4036), entre os dias 16 e 17 de junho de 1980, com produção de Ronoel Simões.
De acordo com Ferrete, Badeco contou que o amigo Moacir Portes, que integrou com ele o conjunto vocal Os Uyrapurus, interessou-se muito por aquela música e por “Meditação”. Moacir então pediu que Garoto escrevesse as melodias, pois iria mostrá -las a uns amigos de Minas Gerais. Quando voltou, apresentou as melodias já letradas para Garoto, que gostou muito do resultado e quis saber o nome do parceiro. Mas Moacir afirmou que o autor das letras não queria aparecer.
Caso Garoto gravasse, teria de constar como “autor desconhecido”. Eis a letra original: “Em um subúrbio afastado da cidade vive João e a mulher com quem casou, em um casebre onde a felicidade bateu à porta foi entrando e lá ficou. E à noitinha alguém que passa pela estrada ouve ao longe o gemer de um violão, que acompanha a voz da Rita numa canção dolente. É a voz da gente humilde que é feliz”.
Não se deve pensar que Vinícius e Chico Buarque fizeram pura e simplesmente uma nova letra para aquela melodia composta por Garoto. Não! A história é um pouco mais complexa. Como vimos, a música com a letra original foi divulgada apenas uma vez e em âmbito restrito. É muito provável que Vinícius desconhecesse a letra, assim como Chico. Por outro lado, a melodia em que o poeta da bossa nova se baseou para elaborar sua letra era aquela que lhe foi passada por Baden Powell.
Vinicius conta assim a história da sua “Gente humilde”: “Eu sentia que naquele tema Garoto queria falar daquela gente do subúrbio, e eu só sei que um dia, há três anos, fui a Roma receber minha afilhadinha, a filha de meu compadre e querido amigo Chico Buarque e nessa ocasião, um dia, em casa de Chico, o tema veio, as palavras saíram, eu chamei meu compadre, a gente juntou as cabeças e a canção saiu”. Já de volta ao Brasil e entusiasmado com a canção, Vinícius reuniu um grupo de amigos em casa de sua irmã Ligia para mostrá-la aos amigos (Correio da Manhã-20/05/1969-Zigue zague).
Eis a letra: “Tem certos dias em que eu penso em minha gente, e sinto assim todo o meu peito se apertar, porque parece que acontece de repente, como um desejo de eu viver sem me notar. Igual a como quando eu passo no subúrbio, eu muito bem vindo de trem de algum lugar. E aí me dá como uma inveja dessa gente, que vai em frente sem nem ter com quem contar. São casas simples com cadeiras na calçada e na fachada escrito em cima que é um lar. Pela varanda, flores tristes e baldias como a alegria que não tem onde encostar. E aí me dá uma tristeza no meu peito feito um despeito de eu não ter como lutar. E eu que não creio peço a Deus por minha gente, que é gente humilde, que vontade de chorar”.
É, meus amigos, duas lindas versões apaixonantes, duas lindas canções que ganhamos para a eternidade.
Salve Garoto, Chico, Vinícius e o autor desconhecido da letra original! Salve a música brasileira!