Por Luiz Zanin Oricchio
Leningrado, 1945: a cidade soviética, atual São Petersburgo, sofreu durante a 2ª Guerra Mundial um longo cerco do exército nazista, no qual morreram 1,5 milhão de pessoas, a maioria civis. O rescaldo dessa carnificina, no imediato pós-guerra, é o palco no qual se ambienta Uma Mulher Alta, de Kantemir Balagov, prêmio de direção na seção Un Certain Regard do Festival de Cannes.
Iya (Viktoria Miroshnichenko) é enfermeira num hospital, depois de ter vivido uma experiência no front que a deixou traumatizada Atende feridos de guerra. Discreta, eficiente e delicada, sofre crises periódicas e sensações de ausência. Por suas qualidades, ela e o filho de três anos são estimados no hospital. No entanto, durante uma dessas crises, produz-se uma tragédia que terá consequências para o resto da história.
Iya é a mulher alta do título, chamada de “grandona” ao longo da história. Contracena com sua amiga mais próxima, a baixinha Masha (Vasilisa Perelygina), também ela traumatizada por experiências no front. Uma Mulher Alta é um filme de mulheres feridas pela guerra, mas cheias de personalidade. Ao contrário, os personagens masculinos serão todos fracos, quando não ridículos. Mas são eles, também, que carregam de humanidade este filme notável, como é o caso de um dos pacientes, Stepan, que perdeu todos os movimentos do corpo por causa dos ferimentos em combate e reflete se vale a pena continuar a viver em tal estado
De certa forma, a Leningrado do pós-guerra é como uma cidade fantasma, povoada por feridos, inválidos e famintos, semidestruída e carente, tendo de se levantar penosamente do caos. Nesse ambiente, convivem a misteriosa e lacônica Iya e sua amiga, em aparência oposta, Masha, sorridente, cheia de vida, mas também de comportamento estranho, machucada em seu âmago, que tenta de qualquer forma ter um filho e luta contra uma limitação biológica. Vez por outra, Iya se queixa de estar “vazia por dentro”, mesmo quando grávida.
Ela vocaliza esse grande vácuo que se segue à catástrofe porque Uma Mulher Alta é a guerra vista pelo olhar feminino. Balagov foi sensibilizado por este viés pela leitura do livro A Guerra não Tem Rosto de Mulher, da prêmio Nobel de Literatura Svetlana Aleksiévitch. Não se trata de uma adaptação, mas de filme inspirado pela leitura de um livro composto de relatos de mulheres que passaram pela experiência da guerra.
Do ponto de vista estético, Uma Mulher Alta é obra bastante exigente e rigorosa deste discípulo de Aleksei Sokurov. A fotografia, em tons ocre e verde, insinua algo de doentio, mas do qual a esperança não está de todo ausente, embora seja problemática.
É também filme de muitos silêncios, em que diálogos permanecem em suspenso à espera da resposta do interlocutor. Há ausências, como em Iya, e vazios, como em Masha, ou em ambas. Tudo a ser preenchido de maneira hesitante quando se descobre que, passada a euforia pelo fim de uma guerra que durou seis anos e produziu milhões de mortos, há tudo por reconstruir e não se sabe bem como começar. Pior: há toda uma geração destruída e que não poderá se reerguer. Os mortos, por certo, mas também mortos-vivos, inválidos e desesperados, como Stepan.
Em meio a tudo isso, há o relacionamento entre Iya e Macha, que atravessa várias fases ao longo da história, do afeto à desconfiança mútua e retornando ao afeto de novo.
O filme não deixa também de insinuar que, com a liquidação violenta da família tradicional em virtude da guerra, abrem-se possibilidades para novos arranjos. Nem por isso se recai no otimismo clichê e clássico sobre portas que se fecham para que janelas se abram.
Tudo é custoso, difícil, traumático e deixa muita gente para trás. A tragédia da guerra em nenhum momento é minimizada e nenhum povo a sofreu com tanta intensidade quanto o soviético, que perdeu 24 milhões de vidas ao longo do conflito, sendo 18 milhões civis.
O filme disputa uma vaga na categoria do Oscar de melhor filme internacional. É forte candidato.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.