Por Luiz Carlos Merten, especial para o Estadão
Em uma cena de Os Relatórios Sobre Sarah e Saleem, ele está na direção da van. Entra numa rua e diz: “Estou entrando na Rua Hebron, que faz a divisa entre Jerusalém Oriental e Ocidental, e que tem sido palco de muitos confrontos entre palestinos e israelenses”. O longa de Muayad Alayan passou na Mostra de Cinema de São Paulo de 2018 e chega ao streaming da Reserva Cultural – Reserva Imovision – como o inédito da semana mais de dois anos depois. Não será mera coincidência que justamente agora, e há vários dias, estejam ocorrendo novos confrontos em Jerusalém. O Oriente Médio segue sendo uma das regiões mais explosivas do mundo.
Muayad Alayan é um autor palestino. Fez filmes como Amores, Roubos e Outras Complicações. Seu cinema é marcado pelo comprometimento político e social, mostrando como é tenso o equilíbrio entre os dois Estados, o de Israel e o palestino, que o primeiro não reconhece. O cinema tem dado esse testemunho, mas não, ou nunca, com o recorte escolhido por Alayan. Quando o filme começa, Saleem está sendo preso com brutalidade. “O que está acontecendo, o que fiz?”
Saleem é um motorista palestino. É casado, sua mulher está grávida. Ele tem uma amante israelense, Sarah, a dona de um café São unidos pelo sexo, exclusivamente. Ele vai preso e é investigado sob a acusação de transportar prostitutas israelenses, e de tentar recrutá-las para a sua causa. Para complicar, Sarah é casada com um militar israelense que trabalha nas forças de segurança. A acusação torna-se mais grave. Sarah, segundo a inteligência de Israel, pode estar passando informações sobre as atividades secretas do marido.
O filme centraliza-se nos dois casais. Saleem e Bisan, Sarah e David. Informado, por vias extraoficiais, sobre o que está se passando, David força a mulher a um testemunho que pode inocentá-la e condenar Saleem a uma pena mais dura – no mínimo dez anos de cadeia. Bisan, ao descobrir a traição, fica dividida Quer se divorciar, e ao mesmo tempo está presa ao casamento. O marido virou herói palestino e ela teria de expor seu comportamento. Estaria destruindo a reputação do pai de seu filho.
Alayan não está falando da grande história, mas da forma como políticas de controle social interferem no cotidiano de pessoas. Quando Sarah conta que arranjou um amante, a atendente de seu café diz que essas coisas acontecem e até podem fortalecer um relacionamento. Mas quando Sarah diz que o amante é palestino, o caso muda de figura. “Com milhões de israelenses para escolher, por que ele? Você estava tão desesperada assim?” E David, ao visitar Saleem na cadeia, e agredi-lo: “Por que ela? Por que a minha mulher?”
Bem escrito, dirigido e interpretado, Os Relatórios Sobre Sarah e Saleem subverte o melodrama pela análise fria dos mecanismos de controle social. O general lamenta muito que David tenha se metido nessa situação. O irmão de Bisan também lamenta, mas tem a própria família e pressiona a irmã para não continuar remexendo nessa trama fedida. O mal-estar e o suspense andam juntos. Muita coisa ocorre à noite, enquanto a cidade dorme. O filme não é conclusivo. Não termina de forma a aliviar a barra para o espectador.
Termina, olha o spoiler, com uma troca de olhares. Saleem e suas duas (ex) mulheres, David nem retribui o olhar de Sarah. O que há é uma espécie de solidariedade entre elas. Mas, por mais que sejam as vítimas da sociedade controlada pelos homens, eles também se fragilizam. A sociedade machista não tem respeito por homens fracos.
Alayan talvez nem saiba disso, mas é um discípulo distante de Otto Preminger. Nos anos 1960, e por meio de uma série de obras-primas, incluindo Exodus – sobre a criação de Israel -, Preminger filmou as instituições (Exército, Igreja, Política) que se superpõem aos homens. A tragédia dos indivíduos, num jogo que os ultrapassa.