Foi em fevereiro de 67 que meu pai me levou a Diamantina para me matricular no seminário. Houve preparativos por vários meses, principalmente com o enxoval. Todas as peças foram marcadas com o número 355. Tomamos um ônibus da empresa Santo Antônio. A viagem durava quase três horas. A mala, na verdade uma canastra providenciada pela minha mãe, de tão grande que era, não coube no ônibus e teve de ser despachada de trem. Ainda havia o ramal Corinto-Diamantina e deve ter sido uma das últimas viagens dessa linha. A cidade me impactou desde o início e já foi reforçando em mim uma verdadeira devoção ao patrimônio cultural e histórico. Diamantina seria declarada Patrimônio Mundial pela UNESCO em 1999.
Fomos recebidos pelo todo poderoso padre disciplinário. Ele me conduziu ao dormitório dos pequenos para eu escolher a minha cama e meu armário. Logo percebi que já existia uma divisão entre os alunos. Os pequenos eram os da minha idade até os 14 anos, geralmente do 1º ao 4º ano ginasial. A outra divisão era a dos grandes, dos alunos do 2º Grau, entre 15 e 18 anos. Cada grupo tinha o seu dormitório. E logo alguém me disse que era proibido os pequenos conversarem com os grandes. Havia ainda o Seminário Maior, dos estudantes de filosofia e teologia. E já no primeiro dia, estava eu em uma guerra de travesseiros no dormitório. Era a estreia da molecada! Nas travessuras, se fossem descobertos os autores e, pior ainda, os líderes, era castigo certo.
Levantávamos às 5:30 com um badalar estridente. O regente, um tipo de sub-disciplinário muito temido, gritava “Benedicamus Domino!” e todos respondiam “Deo gratias”. E vinha uma bateria de orações, meditação, missa. Depois, café da manhã, quatro aulas e almoço. À tarde, horários de estudo, terço, banho, jantar, mais estudo e orações. Às 21:30, todos na cama. Tudo era coletivo. Toda a linha de formação era inspirada no Colégio do Caraça, aliás, a grande matriz de todas as escolas católicas desde o Brasil Império. A disciplina era draconiana, mas sempre dávamos um jeito de ir resistindo eexercitando a nossa liberdade. E havia sempre alguns colegas que eram nossos confidentes. Eram em que mais confiávamos.
Os cinco anos que lá passei foram pedagógicos! Era uma luta pela sobrevivência diante do bullying generalizado, e dos castigos físicos. Mas a maior repressão era no campo das ideias. A linha ditada por Dom Sigaud, o arcebispo, era extremamente conservadora e, muitas vezes, nos chegava o zum-zum de discordâncias envolvendo os seminaristas maiores. Houve várias expulsões. Alguns se dirigiam para outros seminários, como eu mesmo faria, mais tarde, por opção. Outros desistiam de vez. Seminaristas de outros lugares, que discordavam dos desdobramentos do Vaticano II e da Conferência de Medelín, eram acolhidos por Dom Sigaud, como um grande grupo que veio de Jacarezinho, no Paraná. Ficaram conhecidos como “os paranaenses”.
Eram os anos de chumbo. Éramos proibidos de ter acesso a qualquer noticiário. Mas me lembro que sempre algum aluno que tinha autorização para ir à cidade, voltava de lá com um jornal que passava, às escondidas, de mão em mão. Eu era um dos leitores. Lia-o no banheiro. Fui saindo cada vez mais da caixinha e me tornando um bom rebelde. Dentre os professores, a maioria padres, alguns me chamavam mais a atenção. Dentre eles, o conterrâneo Celso de Carvalho, professor de Latim, um verdadeiro intelectual, famoso pelas suas trovas. Sempre conversava com os alunos e não temia chamar o regime de ditadura. Era um liberal. Soube, recentemente, que ele estava em Roma durante a II Guerra e chegou a esconder judeus da perseguição nazi-fascista.
Já existia uma grande divisão fomentada pelos embates internos da Igreja. Cheguei a ser convidado a me retirar. Mas convite se aceita ou não. Não aceitei, e fiquei mais um ano. Quando assumi a presidência do Grêmio Estudantil e fazíamos circular um jornalzinho com o nome de O Martelo(!), surgiram problemas mais sérios. O bispo já se desentendera com a TFP e com os grupos mais reacionários. E os que vieram expulsos do Paraná, ele também os expulsou de Diamantina. Soube depois que um dos paranaenses chegou a jogar água benta na minha cama! Eu já devia estar endemoniado! Em 72, deixei de vez o seminário. Em um dia de janeiro daquele ano, desembarquei na rodoviária em Juiz de Fora. Uma janela aberta para o mundo!