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“Essa gente”, de Chico Buarque e as tensões atuais do Brasil

Um escritor decadente. A dificuldade de se comunicar com o filho pré-adolescente. Uma mal resolvida vida amorosa. À sua volta, um Rio de Janeiro sangrando e estrebu­chando suas mazelas sociais e corrupção. Então outros narradores se apresentam. E o leitor percebe que está em meio a um livro que o escritor está a escrever: uma comédia de costumes repleta de tortuosas vielas literárias mundanas, alegóricas e metalinguís­ticas. Então a paisagem: a classe média alta do Leblon convivendo com a pobreza e a miséria da vizinha favela do Vidigal. Primeiro livro de Chico Buarque após este ganhar o Prêmio Camões, “Essa gente” é narrada em forma de pequenos capítulos de diário, tendo como pano de fundo o Brasil contemporâneo, com muitas passagens espelhando o cenário político-social brasileiro desde as últimas eleições.

Selfies com policiais que abateram um assaltante, bem como, a menção de uma estátua masculina em tamanho real banhada a ouro, vestida costumeiramente com uma faixa verde-amarela, e o noticiário divulgando soldados terem disparado 80 tiros contra o carro de um músico negro, entre outros, podem ser citados como exemplos muito bem aproveitados pelo autor para este desenvolver sua ficção. Mosaico complexo já tomado como característica pontual das narrativas do autor, o Brasil se lê nas páginas deste lançamento.

Nascido no Rio de Janeiro, em 1944, Chico Buarque, além de reconhecido composi­tor e cantor, iniciou como cronista nos tempos de colégio. Seu primeiro livro foi publi­cado em 1966, trazendo os manuscritos das primeiras composições e o conto Ulisses, além de uma crônica de Carlos Drummond de Andrade sobre A Banda. Em 1974, escreveu a novela pecuária “Fazenda modelo” e, em 1979, “Chapeuzinho Amarelo”, um livro-poema para crianças. Em 1991, publicou o romance “Estorvo”, vencedor do Prê­mio Jabuti de melhor romance em 1992. Quatro anos depois, escreveu o livro “Benja­mim”. Em 2004, seu romance “Budapeste” ganha o Prêmio Jabuti de Livro do Ano. Em 2009, lançou o livro “Leite Derramado”, que também recebeu o Prêmio Jabuti de Livro do Ano. Em 2016, teve anunciada a estreia da versão teatral deste romance pelo Club Noir, estrelada por Helena Ignez e Luiz Päetow.

Um trecho? Um diálogo entre o personagem Agenor, apresentado como “um negro bonito de presumíveis 40 anos”, e o narrador Duarte, no qual o primeiro, referindo-se à obra que o segundo prepara, pergunta: “Você no livro é branco ou preto?”, o que inspira em Duarte uma reflexão: “Percebo que nos romances nunca me preocupei em explicitar a minha cor. É curioso que, num país onde quase todo mundo é preto ou mestiço, autor nenhum escreveria ‘hoje encontrei um branco…’, ou ‘um branco me cumprimentou…’, ou ‘o sargento Agenor é um branco bonito de presumíveis 40 anos’”.

Por ocasião de ser laureado com o Prêmio Camões, em maio deste ano, vivenciou a recusa do então presidente da república em assinar tal homenagem, rebatida de pronto, em seu Instagram, como “um segundo Prêmio Camões que ele, então, recebia”. Homem culto, reservado, avesso a aparições e tumulto, Buarque é um autor que valoriza e impri­me identidade ao que há de melhor na literatura nacional.

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