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Esqueceram o bebê na Choperia Degraus

A noite de Ribeirão Preto, onde cantei por mais de 20 anos, foi em minha vida uma grande escola. Já dizia Baden Powell, violonista/compositor e grande parceiro de Vinicius de Morais: “A noite é a faculdade dos boêmios”. Ele tinha razão. O que vi e vivi e aprendi na noite levarei pra sempre na gaveta de minha memória. Vez em quando eu a abro e boto a história no papel.

Na época, para conciliar meu trabalho na Polícia Rodo­viária com os lugares em que cantava, tinha que bater nas onze, mas fazia tudo com amor, dedicação e carinho. Não me considero um cantor, apenas gosto de cantar e compor. Mas vamos lá. Cantava toda sexta e sábado no Ponto Chic e co­nhecia a clientela pelo nome e gosto musical. Além do mais, deixava amigos que também cantavam na noite dar deliciosas canjas, fazendo o que mais gostavam, que era cantar.

Entre tantos casais que picavam cartão no Ponto Chic vou citar hoje meus amigos Jorge e Cristina, dois seres humanos excepcionais. Não tinham filhos e dificilmente faltavam na noitada. Jorge dizia: “Buenão, a sexta-feira é o Dia Nacional da Cerveja”. Muitas vezes eu saía de lá depois da uma da manhã e o casal permanecia jogando conversa fora – e cerveja pra dentro.

Segunda, terça e quarta eu cantava na Choperia Degraus, que ficava ali na avenida Treze de Maio, e lotava a semana toda. O que acontecia ali era de se tirar o chapéu. Certa noite, casa cheia, eu cantando com meu parceiro – o ritmista Gerci­nho –, decidi cantar uma seleção de sambas lentos, misturan­do-os com alguns sambas canções. Nessa praia não poderia faltar clássicos de Nelson Gonçalves.

Notei que, nessa parte, o pessoal que estava em uma das mesas direcionava aplausos calorosos. No intervalo fui até eles agradecer o carinho. Foi quando me disseram que um deles era cover de Nelson Gonçalves em São Paulo, seu nome era Cesar Gonçalves.

José Carlos, dono do Degraus, autorizou e eu convidei o Cesar para dar uma canja. O cara subiu no palco e arra­sou. Sua voz era a mais perfeita imitação do original, a mais parecida que eu já tinha ouvido. Fechava os olhos e tinha a impressão de estar ouvindo o velho “Nersão”. O público adorou, Cesar voltou pra sua mesa e a galera o rodeou para um bate-papo.

O dono da casa, feliz da vida, pediu pra eu ver de quanto era seu cachê, queria uma apresentação do Cesar ali. Eu disse que depois levaria um lero com ele, Cesar, muito alegre, en­cheu o caco de caipirinha com chopp e me pediu pra cantar outra vez. Vendo seu estado etílico, aconselhei que não seria bom, mas ele insistiu tanto que cedi.

O cara subiu ao palco, começou a imitar gays, tentou imitar o Chacrinha e ao tentar cantar pisou na bola. Pedi pra ele descer, mas convencer um bêbado de que ele estava “pra lá de Bagdá” foi difícil. O dono da casa abortou a ideia de contratá-lo.

Voltando ao casal Jorge e Cristina, uma bela noite eles me aparecem na Choperia Degraus com um bebê num lindo car­rinho. Tinham acabado de adotá-lo e levaram o menino pra que eu o conhecesse e assim batizá-lo na noite. Era o Renati­nho, hoje com mais de 30. Os dois, pra comemorar, tomaram um monte de chopp.

Lá pelas tantas me deram tchau e vazaram. O garçom, de apelido “FM”, percebeu algo errado e gritou: “Buenão, seus amigos esqueceram o bebê aqui”. Gritei “corre atrás deles, só sei que moram no Sumarezinho!”. O “FM” desceu a lenha em seu velho Passat, pareou com eles na avenida Francisco Junqueira e gritou até que pararam o carro.

De volta ao Degraus foi aquela festa, e Jorge, habilidoso, pediu desculpas dizendo que após tantos era preciso se acos­tumar à nova rotina. “Agora somos três, Buenão”.

Sexta conto mais.

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