Viver é distante. Nascer pode ser agora. O milagre que esperamos era um dia comum antigamente, quando, na origem da linguagem de muitos povos, não tratávamos a vida com tantos opostos, tantas diferenças. Mas fomos tirando o encanto do tempo e trocando por horas de obrigações. Escolhemos criar tantas distâncias entre as palavras e as coisas, entre os significados e nós, que fomos nos afastando uns dos outros.
A pergunta sobre o que é poesia pode ser outra. Talvez: o que não é poesia? Pois quase tudo é ou era. Uma troca mágica entre as coisas e as pessoas, entre uma mesma palavra que poderia representar objetos distintos. Não éramos tão específicos, não classificávamos ninguém, separando-nos tanto da mesma vida que dividíamos.
A poesia apaga diferenças, preconceitos, desconsidera níveis sociais, mastiga medos e desautomatiza o ser humano. A poesia ignora a distância que criamos entre o velho e o novo, o perto e o longe, o feio e o belo, o erro e o acerto, a luz e a escuridão, a terra e o céu. Porque não começamos e não terminaremos em nós mesmos. Há um pouco de nós em tudo. E um pouco de tudo em nós.
Então, quando acordarmos amanhã, no corpo que sonha o milagre esquecido, nos transformaremos nas palavras que dissermos, em cada uma delas, e as palavras receberão a forma do nosso rosto, como se fôssemos uma coisa só. Passaremos, outra vez, a fazer parte da mesma natureza dos pássaros, dos rios, das árvores. E voltaremos a respirar como quando éramos crianças, no ritmo que nos pertence. E de repente perceberemos que não somos feitos para acreditar no que disseram sobre tudo, e passaremos a ver as coisas com o direito de imaginá-las e vivê-las como eu e você escolhermos.
Ouvir a voz dos filhos, segurar a mão da mãe. Tomar café com a namorada, com o esposo. Fazer o jantar juntos. Cuidar da casa juntos. Esperar o dia do aniversário. Ligar, em vez de escrever, para alguém que queremos bem. Visitar esse alguém. Abraçá-lo demoradamente. Sentar no quintal aberto para o descanso dos olhos, dos ouvidos. Olhar mais para cima e menos para baixo. Ver a arquitetura da cidade. Ouvir o som da cidade, sua-minha-voz. Andar de mãos dadas com quem habita aquele espaço da vida comigo-com-você. Perdoar. E amar sem precisar de um motivo.
Foi lendo livros. Lendo o que não estava escrito em lugar algum. E foi pela inadaptação ao que os outros queriam que eu lesse, que entendesse como realidade, que comecei a escrever. E escrever não com tinta e papel, mas com brinquedos que eu inventava, quando criança, para dar conta de enganar as horas. Era que eu não conseguia me entender com aquela repetição dos dias, que empurrava meus olhos para tudo que já estava feito, acabado, sem que eu pudesse dar um significado novo ao que via. Então decidi enxergar apenas o que eu sentia.
Viver é distante. Nascer pode ser agora. Então eu nascia sempre. E renascia ainda mais. Então eu amava minha mãe, meu pai, meus irmãos, minha irmã Amanda, que se foi em 1979. Mas quem disse mesmo que ela se foi? E amava minhas tias, meus tios, meus primos, minhas primas, meus avós, minhas avós. Minhas amigas da rua e da escola. E todos os meus amigos de todos os lugares. E errava com eles. E acertava com eles. Mas quem disse mesmo o que é errar e acertar? E chorávamos ao mesmo tempo em que ríamos, sem saber o que era uma e outra coisa.
Sigo como estudante da vida que eu quero dar a mim mesmo, à minha filha, ao meu filho, à minha esposa. Estudante das coisas que se desapegaram do amor. Do amor que, distraído, não enxergou a distância entre as diferenças que criamos, e abraçou o mundo, reunindo todos nós na mesma palavra que, há pouco, escrevia isso gentilmente comigo.