A véspera do Natal de 2016 mudou radicalmente a vida de Sara Neves Macedo. Ela guiava uma moto na rodovia Padre Manoel da Nóbrega, no litoral sul paulista, quando sofreu um acidente a 200 metros da casa da mãe, em São Vicente (SP). “Estava há muitas noites sem dormir e acabei cochilando”, afirma à Agência Brasil. “Fiquei pressionada no muro de contenção. A moto arrastou meu ombro para trás e tirou os nervos da medula. Quebrei o punho da mão direita e o guidão entrou no pulmão, quebrando a costela. Tive queimadura na perna direita, quebrei os dedos do pé e cortei o tornozelo”, enumera.
Estar viva, por si só, já é uma vitória. O que dirá, então, ser capaz de surfar, mesmo com movimentos de braço e pernas comprometidos? Sara é uma das primeiras alunas da escola de surfe adaptado de Santos, no litoral paulista, inaugurada em janeiro. “Sete aulas já deram grande evolução na minha autoestima, saber que posso ir além do meu limite. Tinha perdido o movimento pela lesão e venho recuperando com os exercícios. Qualquer pequeno retorno é uma grande conquista”, relata.
“É a primeira escola assim no mundo”, afirma o surfista Cisco Araña, coordenador do projeto, com meio século de experiência no mar. “Abrimos, primeiro, um programa de 10 aulas para 80 pessoas, que lotou. O segundo programa, que será até maio, também lotou. O objetivo era atender 240 pessoas até o fim do ano, gratuitamente, mas iremos além”, emenda.
O próprio Cisco idealizou, na década de 90, a primeira escola pública de surfe do Brasil, também em Santos. Foi onde conheceu o aluno que transformou sua maneira de dar aulas. “O Valdemir era cego. Nos 10 anos com ele, percebemos que os equipamentos não eram adaptados. Foram observações significativas para desenhar uma prancha adaptada, com marcação em alto relevo, quase um braile”, lembra. “Coloquei venda para sentir um mundo que não entendia. Escutar o som do mar, das pessoas, entender o sol, e buscar um protocolo para colocar uma pessoa cega em pé na prancha”, conta o surfista, que também desenvolveu uma prancha multifuncional, construída com módulos removíveis, adaptáveis, adequada a outras patologias, como a paralisia cerebral.
Com mais interessados, foi criado um núcleo específico para pessoas com algum tipo de deficiência, embrião da escola adaptada. Foi lá que Judah, de 10 anos, pegou as primeiras ondas. O pequeno tem síndrome de Down e autismo. “Deu para reparar um desenvolvimento cognitivo interessante nele. A perda do medo do mar faz com que ele se entregue nas aulas, tenha coordenação motora e desenvolvimento intelectual. Ele corresponde mais aos estímulos, ficando mais espertinho”, descreve Rodrigo de Souza, produtor cultural e pai do Judah.
Enquanto a reportagem da Agência Brasil conversava com Rodrigo, a aula de Judah chegou ao fim. O pequeno se aproximou do pai, procurou a sombra e sentou-se na areia. Exausto, mas feliz. “Ele tem Tireoidite de Hashimoto [doença autoimune na qual o organismo fabrica anticorpos contra células da tireoide] e também tem traço de anemia falciforme. Ele não consegue fazer exercícios físicos, então, no surfe, ele consegue, de fato, gastar essa energia”, explica o produtor cultural.
“Além do sol, da vitamina D, os benefícios da água marinha são incríveis e reportam ao tempo da Grécia antiga, da talassoterapia [exploração de virtudes curativas do ambiente marinho para fins terapêuticos]”, destaca Cisco. “Nós aprendemos na observação. Copiamos movimentos e gestos. E eles aqui são de amor, de acolhimento positivo. Não que as reabilitações que existem não sejam boas, mas, às vezes, a pessoa se encontra mais em outras terapias, com outros elementos”, completa.
É o que ocorreu com o policial militar aposentado Júlio César Deolindo. Após um acidente há dois anos, com fratura da cervical e lesão na medula, ele teve diagnóstico inicial de tetraplegia, que evoluiu para tetraparesia (fraqueza anormal em pernas e braços). “Desde então, a vida é na fisioterapia, inclusive em casa. Estava em uma fase maçante. Mas o surfe mudou tudo”, relata.
Nas aulas, os alunos são auxiliados pelos professores no acesso à prancha e na surfada propriamente dita, ajudando-os em eventuais quedas. No dia que a reportagem da Agência Brasil acompanhou as aulas da escola de surfe adaptado, Júlio César estava eufórico. “Não caí em nenhuma onda. Foi uma evolução incrível”. E ele quer mais: “Surfávamos em uma prancha de stand-up paddle, que é bem estável, mas já perguntei sobre surfar de bodyboard, surfar de joelhos…”.
“Daqui a pouco, ele sairá sozinho de casa com a prancha e vai para o mar, sem precisar de escola. A ideia é proporcionar autonomia, felicidade e saúde”, diz Cisco. “É uma terapia onde os pais também estão incluídos. Sentimos e sabemos que as crianças dormem melhor, alimentam-se melhor, a parte fisiológica melhora. Percebemos o quanto eles estão felizes. Para nós [professores] também é muito bom. É questão de sinergia e empatia”, conclui.
Edição: Fábio Lisboa