Tribuna Ribeirão
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Escassez, aridez, calor e inflamabilidade: agonia de um bioma 

Perci Guzzo *
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“O santo que faz milagres, também castiga/ O chão que dá flores também dá urtiga/ A mulher que ama, também odeia/ E tudo que dá em abundância, escasseia”. O samba “Escasseia”, interpretado por Beth Carvalho, têm como autores Aluísio Alcides, Casemiro Laudeni e Calazans Viveiros, é peremptório: as mudanças ocorrem, não se enganem; e o que era bom e amável, torna-se ruim e desarmonioso.

Onde havia abundância de água, o fogo se alastra.

Ainda me impressiona nossa enorme capacidade de criar ambientes áridos e pobres a partir de ambientes úmidos e ricos. Atribui-se a isso o modo equivocado de interferir no ambiente físico e biológico que tudo sustenta e tudo provê aos humanos.A reestruturação da formação dos profissionais responsáveis por essas intervenções – destaque para as engenharias -é algo inadiável. A atualização profissional e pessoal é premissa para planejar e agir por um futuro seguro e digno.

A grande maioria das reações químicas que sustenta as diferentes formas de vida se dá em meio aquoso. À medida que drenamos biomas, ecossistemas, organismos e células, caminhamos, invariavelmente, para o definhamento e a morte. Como pode o país com a maior quantidade de água doce superficial do Planeta, estar secando? A causa não é somente a mudança do clima, mas é, também, nossa incompetente e desastrosa maneira de intervir e produzir.

Assim como geramos impacto ambiental negativo, podemos sim, gerar impacto ambiental positivo. Cocriar, coevoluir, colaborar e compreender a natureza, ao invés de transformá-la em ambiente inóspito onde nem mesmo nós, artificializados como estamos, conseguimos viver de modo saudável e prazeroso. Para onde estamos indo e com qual qualidade de vida? Onde a vida se esvai?

No Pantanal. O balanço hidrológico (precipitação x evaporação) afere uma grave escassez hídrica (seca) de 2020 para cá. O pulso fraco de inundações anuais na planície pantaneira gera imensas quantidades de biomassa menos úmida no solo, tornando-a mais inflamável no período de estiagem. O nível do Rio Paraguai e de seus contribuintes atinge índices críticos. O desmatamento do Cerrado, autorizado pelos órgãos ambientais estaduais, para ampliação da área de cultivo da soja resseca nascentes, cursos d’água e lençóis de subsuperfície.

Dados do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro atestam que 85% da área queimada desde em 2024 está em propriedade privada e que todos os incêndios foram causados por ação humana.

Não tem água e Poder Público suficientes para reverter a imensidão que queima, não obstante os enormes esforços de brigadistas federais e estaduais. Não tem água, governos e Nações Unidas suficientes para reverter o prejuízo socializado pela agricultura comercial de exportação. Nós estamos assistindo a morte de um bioma inteiro. O Pantanal deixará de ser a maior planície inundável do mundo com sua riquíssima biodiversidade. E isso não nos mobiliza como deveria.

Jamais esquecerei o som das diferentes aves nos amanheceres pantaneiros quando lá trabalhei. Um “barulho” que tinha início bem antes das quatros horas da madrugada me deixava atônito deitado na cama. Não punha medo, mas era diferente de tudo o que já havia escutado na vida. Aquilo me ampliou de um modo impensável.

“Eu fui à Corumbá no Pantanal olhar a bicharada/ E fui pra ver, não vi/ Que decepção senti/ Vi quase nada/ Eu não vi bem-te-vi, beija-flor nem juriti/ A passarada/ Eu não vi jabuti, não vi coral, sucuri/ Vi quase nada/ Eu não vi quati, não vi anta nem sagui/ Onça pintada/ Eu não vi o saci, nem o grilo cri-cri/ Vi quase nada/ Eu não vi lambari, nem pintado, nem mandi/ A peixarada/ Paca também não vi, pacu, índia guarani/ Vi quase nada/ Eu não vi jacaré, não vi cobra cascavel/ Não vi ninhada”. Itamar Assumpção, Adeus Pantanal.

Estariam seguros os outros biomas brasileiros tendo em vista esse modelão neocolonial de desenvolvimento?

A água no interior paulista com a avalanche canavieira não estaria escasseando?

* Ecólogo e Mestre em Geociências. Autor do livro “Na nervura da folha”, lançado em 2023 pelo selo Corixo Edições  

 

 

 

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