Um mercador poderosíssimo de Bagdá deu ordens ao seu vassalo para que fosse à feira fazer compras. Ordens são ordens. O vassalo saiu correndo para a feira, quando então levou um enorme susto: a morte olhava para ele.
Passou a se esconder entre as tendas. Nada dava resultado, a morte sempre aparecia por ali e deitava os olhos neles. O pobre homem voltou para casa e confessou ao patrão que pouco havia comprado. Amorte andava atrás dele, dando-lhe um enorme susto.
O mercador, como sempre, resolveu prontamente a questão. Deu ordens para o vassalo tomar o seu cavalo árabe mais rápido e fugisse para Samarra, onde deveria ficar escondido, após atravessar o deserto sem portas e nem paredes. Ordens são ordens. O homem tomou um cavalo árabe e disparou pelo deserto numa correria danada.
O amo, não satisfeito, ele mesmo dirigiu-se à feira para chamara atenção da morte. Como ela poderia assustar seu vassalo, revogando sua ordem, sem pedir autorização.
Ao encontrar a morte, o mercador de Bagdá foi logo admoestando, confirmando que ela não a tinha poderes para revogar qualquer de suas ordens.
– “Onde teria encontrado poderes para assustar seu vassalo”?
A morte, demonstrando uma insuperável humildade, respondeu que não deu susto nenhum no vassalo.
– “Muito ao contrário, foi ele quem me assustou. Tenho um encontro com ele daqui a pouco em Samarra. E ele estava aqui em Bagdá. Como ele vai fazer para chegar lá, na hora do nosso encontro marcado?”.
O texto, que reproduzo de memória, é do autor norte-americano Somerset Maugham. Por razões que desconheço, não me lembro de quando chegou na minha memória, ali permanecendo até hoje sem pedir licença.
Se estivesse ainda dando aula, pediria licença aos meus alunos para mudar, tanto quanto fosse possível, a caminhada das personagens, até mesmo para adaptar as palavras à minha caminhada.
Substituo o mercador de Bagdá por uma grande autoridade pública brasileira que, muito embora tivesse poderes irresistíveis, nada ou pouco sabia dos caminhos e das sendas trilhadas pela morte. Por mais culto que assim fosse, poderia até mesmo ignorar que a morte tinha trocado de nome. A morte não se chamava mais morte, mas sim “vírus” que entra por um lado e sai por outro, sem pedir licença, como se fosse um fantasma?
Substituiria ainda o cavalo veloz por inúmeros hospitais públicos e privados, sempre mais reduzidos do que o arenoso caminho do deserto. O vassalo deveria fugir da morte não montado no cavalo veloz, mas socorrido por heroicos médicos e enfermeiros.
E o vassalo? Quem seria o seu substituto? Seguramente colocava no lugar do pobre vassalo o povo abandonado pela autoridade pública brasileira que mergulhado no mais tortuoso labirinto estava condenado a encontrar o “vírus” não em Samarra, mas na calçada da sua casa.
No dia de hoje cerca de mais de dez mil pessoas já partiram desta vida no incrível encontro em Samarra, perdão, com o coronavírus. O número espanta até mesmo pela estatística. Pudera, trata-se de um encontro gigantesco. Cerca de 500 soldados brasileiros foram mortos na Itália durante a Segunda Grande Guerra. Até este Dia das Mães, 10 de maio de 2020, 10.400 brasileiros foram assassinados pelo “vírus”, o nome da nova morte.
Conclui-se que o mercador de Bagdá e o administrador brasileiro desconhecem qual é o caminho da morte, nem mesmo a inutilidade de se esconder no meio de um deserto, num local que ninguém conhece e que não tem o nome de Samarra.