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Cultura

Em ‘Democracy! Suite’, Wynton Marsalis reflete sobre as liberdades

Por João Marcos Coelho, especial para o Estadão

A pandemia interrompeu brutalmente qualquer contato direto dos músicos com seus públicos. De repente, um cordão umbilical desprendido deixou todo o mundo em suspenso – um estado de isolamento que já dura praticamente um ano.

Este raciocínio não vale para o trompetista Wynton Marsalis. Aos 59 anos, permanece, há várias décadas, como um dos músicos mais importantes do planeta. Primeiro, por sua genialidade inclusiva ao trompete, seu instrumento (foi o único a ganhar Grammy nas categorias clássico e jazz no mesmo ano). Também por sua determinação em criar para o jazz um cânone como o da música clássica, institucionalizando o ensino e a difusão dessa música afro-norte-americana por excelência, por meio do Jalc – Jazz at Lincoln Center, que inclui uma big band e um trabalho sistemático de difusão do ensino do jazz. O efeito cascata foi muito grande: as universidades norte-americanas instituíram departamentos inteiros de jazz, algo que repercutiu até por aqui, com nossas universidades criando departamentos de música popular.

Além da sede em Manhattan, o Jalc funciona como uma usina de projetos envolvendo a história do gênero, estimulando novas gerações de músicos. Também é um centro de ensino direto. A difusão de partituras e materiais aos poucos consolidou um novo status para o gênero. Wynton e sua sensacional Jalco (o “O” final é de Orchestra) costumam fazer verdadeiras instalações por onde passam, pelo mundo. Permanecem por uma quinzena na cidade ou país escolhido e lá atingem tanto o público de shows, mas também estudantes e interessados por meio de masterclasses e concertos didáticos. Fizeram isso no Sesc Pinheiros, em junho de 2019.

Mesmo na pandemia, Wynton não diminuiu o frenético ritmo de trabalho. Gravou em estúdio, em 30 de novembro de 2020, logo depois das eleições norte-americanas, um álbum que chegou às mídias digitais em 21 de janeiro pelo selo Blue Engine Records. Em Democracy! Suite, para alegria dos que gostam de ouvi-lo em formações menores, como esse septeto, Wynton reflete sobre o estado de espírito de um país partido ao meio. A composição ocorreu entre março e maio de 2020 – houve uma apresentação pública na metade do ano e, depois, esse registro.

Quando mergulham no embate político-ideológico, os músicos em geral dividem-se em dois grupos claros: os furiosos e indignados, que demonizam seus oponentes ideológicos; e os que injetam uma boa vacina de esperança em tempos melhores. Marsalis fica com a turma mais alegre, mas nem por isso ingênua. E deixa isso claro no texto do encarte: “A suíte não é polêmica. É uma composição instrumental inspirada em fatos, sentimentos e ficções de nossa atual situação global. Foi composta depois do lockdown e aborda o drama, a beleza e a feiura desses tempos. Em última análise, é otimista no tom e na execução”.

Tradicional

De fato, se nos descolarmos dos títulos das oito partes da suíte, apenas fruiremos de performances notáveis de um septeto tradicional, fazendo jazz mainstream típico dos anos 1950. Compreensível. Marsalis, que nasceu em New Orleans, berço do jazz, jamais quis inovar. Desde sempre, é um guardião do cânone, de Armstrong a Monk, passando por Ellington (seu ídolo supremo), Parker e Gillespie. E que guardião maravilhoso. Seus solos continuam a embasbacar e seu trabalho continua relevante, legitima o gênero em termos planetários.

Mas, se atentarmos para os títulos das músicas, aí o clima se incendeia. É música de luta. Luta para que os negros votassem em massa na eleição de novembro passado. A abertura já diz tudo: Be Present. Preocupado em não deixar dúvidas, Wynton assina um texto para cada uma delas. “Be Present inspira-se nos cidadãos que arriscaram suas vidas trabalhando na pandemia (por escolha ou não). Reconhece também os esforços de todos os que escolheram lutar pelas liberdades humanas, como e onde quiserem.”

Musicalmente, soa como um uma versão menos áspera dos célebres Jazz Messengers, do lendário baterista Art Blakey dos anos 1970 – grupo do qual participou entre 1980 e 1982. De novo, nenhum problema. Wynton jamais quer inovar, ele é um genial repositório do melhor jazz mainstream – personifica não só o historiador meticuloso, mas também é músico de exceção. Pratica à perfeição todos os estilos. Um exemplo matador como trompetista clássico está no álbum em que sola concertos de Haydn, Mozart e Hummel ao lado da Orquestra de Câmara Inglesa regida por Raymond Leppard.

As demais partes da suíte têm títulos autoexplicativos. Como esta: Sloganize, Patronize, Realize, Revolutionize (Black Lives Matter). Aqui só o piano de Dan Nimmer, que repete hipnoticamente um groove, não improvisa. Os demais fazem solos enxutos, interessantíssimos. Ninguém joga conversa fora, tudo é essencial. Pela ordem, improvisam Carlos Henríquez ao contrabaixo, Obed Calvaire à bateria, Walter Blanding nos saxofones soprano e tenor e no clarinete, Elliot Mason ao trombone, Ted Nash nos saxes alto e soprano, além da flauta. Sem contar o solo de Marsalis, claro. Outros títulos reveladores são Ballot Box Bounce, algo como o balanço da urna, convocação para a comunidade negra votar, That Dance We do (That You Love Too) e Deeper Than Dreams. Out Amongst the People (for J Bat) pede esclarecimento: é um tributo ao ativismo do pianista e amigo Jon Batiste, frequentador obrigatório de todas as muitas manifestações de 2020.

Wynton já declarou que a democracia é como o jazz. Diferentes convivem harmoniosamente. No septeto, como aliás na big band, o espaço do líder é rigorosamente igual, quando não menor, em relação aos demais. Sobrevive quem se equilibra nessa corda bamba entre o direito de se expressar individualmente e o dever de respeitar os direitos do outro. Uma lição simples, que o mundo infelizmente parece ter desaprendido.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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