Perci Guzzo *
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Em Minas Gerais é “ei” no lugar de “oi” ou do “olá”. A entonação também difere, pois parece vir carregada de uma alegria no encontro. “Ei, tá bom/boa?”. Cumprimento e desejo de que tudo esteja bem ao amigo, à amiga. Percepção de um paulista passeando por algumas cidades históricas depois de muitos anos.
Os únicos três órgãos de tubo em funcionamento dentro de igrejas barrocas brasileiras estão em Minas.
Em recente viagem vi e ouvi o concerto maravilhoso com o órgão da Catedral de Santo Antônio, em Tiradentes. Trata-se de um instrumento encomendado pela Irmandade do Santíssimo Sacramento, sob o reinado de D. Maria I, à um fabricante na cidade do Porto, em 1785. Para chegar em Tiradentes naquele final de século, foram contratados tropeiros que viajaram meses, partindo do Rio de Janeiro, com as grandes caixas em lombos de mulas. À época, a Vila de São José do Rio das Mortes, hoje Tiradentes, vivia uma efervescência musical. Os órgãos tinham função eminentemente litúrgica e eram os únicos instrumentos autorizados pela Igreja Católica para acompanhar os cânticos das missas.
Em Mariana está o órgão Arp Schnitger – nome do fabricante alemão. Este, mais antigo, foi construído na primeira década do século XVIII, em Hamburgo, e adquirido em 1747 por D. João V, rei de Portugal. O presente foi endereçado à então recém criada Diocese de Mariana. Também vi e ouvi o concerto com este instrumento na primeira viagem que fiz às cidades barrocas. Recordo-me do momento único da música oitocentista preenchendo toda a Igreja da Sé ao meio dia de uma sexta-feira.
O terceiro órgão encontra-se em Diamantina. Ainda não o conheço. Lendo, descobri que se trata de instrumento integralmente confeccionado no Brasil, pelo então padre Manuel de Almeida e Silva, no Arraial do Tejuco, no período de 1782 a 1787. Pertence à Ordem de Nossa Senhora do Carmo de Diamantina e encontra-se restaurado, assim como os outros.
Vivenciar a arte sacra é perceber que o barroco ocupa um espaço esquecido, mas garantido em mim. Provavelmente, em muitos de nós. Isso sim é riqueza!
Refaço os passos da história contada e recontada por guias, pessoas do lugar e beatas desconfiadas com os estrangeiros à cidade. Ao sair de cada igreja, vislumbro o casario colonial, baixo e colorido, tão típico das antigas vilas brasileiras. Assim, a saudade me leva também para Goiás Velho, Olinda, São Luís e Penedo alagoana. Como será Salvador; como será Sabará?
Os becos são um caso de afeto à parte. Nada mais aventureiro do que adentrar soturnamente nos meandros de um beco sem saber onde será o seu fim. Sempre imagino um pequeno cortejo de carnaval irrompendo o sono e o sossego do beco com música e alegria. “Deixe que eu te encante com festa profana pelo menos uma vez por ano, seu Beco!“
Mas meu gosto pelo silêncio me leva aos espaços desamparados atrás das grandes igrejas. Largos, praças ou apenas uma estreita calçada. O abandono desses lugares onde um cão dorme sossegadamente. Quero ficar por ali um certo tempo, ensimesmado, para pensar no desabrigo da vida: dos animais de rua, dos flamboyants envelhecidos e dos alcoólatras. Minas Gerais é danada nesse quesito!
A chuva tem sido breve neste verão. Veremos onde isso vai dar… Dizem que a história dá voltas, se repete e que o tempo tudo mostra. Os tempos humanos são de poucos anos, no máximo décadas, saeculorum. Já os biológicos são eras e períodos de milhares e milhões de anos.
Nesta recente passagem por Minas, percebo minha atenção mais voltada às pessoas e suas histórias. Os vestidos de chita verde e rosa das duas comadres que juntas almoçaram no restaurante da Ângela em Bichinho. Esse, distrito de Prados, oferece um gostoso passeio pelos ateliês de seus inúmeros artistas. Arte em ferro, madeira, pano e cipós. Cada artefato moldado por mãos habilidosas e persistentes é motivo de minha atenção e reverência. Até mesmo seu Bôscoli, no centro de São João del-Rei, consertando relógios de parede, recebe meu olhar atento. Ele ali com sua lupa cravada no olho direito e com uma pequena pinça movimentando as diminutas roldanas de metal que marcam o tempo com exatidão.
Por fim, as peças de barro de uso doméstico de Tião Paineira. Quanto arroz branco com cenoura foi feita na minha panela de barro avermelhado, confeccionada por esse tiradentino?! Embora “Paineira” no apelido, Tião vendia panelas, moringas e travessas sob a sombra de uma grande figueira na praça central de Tiradentes. Foi ali, naquela ocasião, que me engracei pelo cerâmica. Nesta viagem constatei que Tião Paineira já faleceu e a figueira apresenta claros sinais de senescência. Mas os utensílios de barro barroco têm sido feitos pelos seus netos e a história continua a ser escrita nas Gerais.
* Ecólogo e Mestre em Geociências. Autor do livro “Na nervura da folha”, lançado em 2023 pelo selo Corixo Edições