Perci Guzzo *
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Chega de postergar decisões perante as mudanças climáticas! Já é tarde para começar agir perante os efeitos desagradáveis e desastrosos do que vem sendo chamado de “novo normal climático”. Não cabe mais negar os fenômenos meteorológicos indóceis após as experiências vividas no Brasil em 2023. Temos que agir rápido e de modo embasado na “ciência da adaptação climática”.
O caminho é se organizar e planejar. Segue algumas orientações na escala de cidade já que estas, sobretudo as maiores, protagonizam a economia, a política, a arte, a tecnologia e a ciência no país.
Primeiro passo: o gestor público deve chamar, constituir e oferecer condições satisfatórias de trabalho à uma equipe multidisciplinar, formada por profissionais de diferentes setores da Administração Pública, incluindo convite a experts de instituições de pesquisa afetas ao tema. Esse grupo terá como objetivo maior o desenvolvimento dos planos estratégicos de mitigação e de adaptação à mudança do clima. A elaboração deve pautar-se na coprodução de ideias e soluções a partir de grupos heterogêneos e colaborativos. Esse é o melhor caminho para a exequibilidade de planos.
Segundo passo: rever decisões, projetos e programas em andamento ou planejados que impõem medidas, obras e ações contrárias à constituição da resiliência climática urbana, como por exemplo, implantação excessiva de infraestrutura cinza, não reaproveitamento de resíduos sólidos, desperdício de água, alimentos, combustível e eletricidade e não despriorização do automóvel. Indicadores de conforto térmico, eficiência energética, permeabilidade do solo e incremento de verde urbano, por exemplo, ajudarão muito nesta fase.
Terceiro passo: fortalecer a Defesa Civil, ampliar função e estrutura do órgão ambiental municipal e instituir política pública intersetorial e comunitária baseada nos planos de mitigação e adaptação climática. Fase sensível que demanda foco, inteligência e criatividade. As soluções baseadas na natureza (SBN) devem ser priorizadas, assim como a previsão de desastres e sua pronta reparação. O monitoramento do calor e de queimadas e as consequentes medidas de proteção da sociedade e dos não humanos, deve ser de alta performance.
Quarto passo: instituição de ampla campanha de informação e de processos formativos a respeito dos novos tempos em que vivemos. Percebam que a emergência climática solicita ciência, prudência, paz, sabedoria, solidariedade, criatividade e democracia, ou seja, o que temos de melhor. O contrário é sofrimento, morte, confusão e gastos impensáveis. Educação e comunicação são áreas estratégicas neste sentido. Jornalistas, acordem e estudem, s’il vous plaît!
É óbvio que há outros passos a serem dados concomitante aos elencados anteriormente, ou mesmo, um jeito de caminhar diferente do que foi apontado. O que não devemos fazer é ficar parados assistindo o mundo lá fora, mesmo porque nosso sofá, nossa casa e nossa cidade estão dentro do mesmo tempo cronológico e tempo atmosférico que o “mundo lá fora”.
Todas as vezes que penso, escrevo ou falo sobre esse tema, me recordo do livro e do filme “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago e Fernando Meirelles, respectivamente. Uma pandemia de cegueira branca acomete a totalidade das pessoas, apenas uma mulher continua enxergando. Na escuridão da vida emergem tensões, sofrimentos e disputas. O lixo (humano) se destaca e protagoniza a sobrevivência em comunidade. Essa obra literária é um divisor de águas para nossa civilização. José Saramago antecipou o que pode vir a ser o nosso hoje e o nosso amanhã.
Contornaremos nosso triste destino coletivo? No filme as pessoas voltam a enxergar…
* Ecólogo e Mestre em Geociências. Autor do livro “Na nervura da folha”, lançado em 2023 pelo selo Corixo Edições